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quinta-feira, 8 de março de 2012

ELES NÃO NOS ENTENDEM*

Caí na besteira de aproveitar um gancho numa conversa de bar, quando já me despedia, para dizer a um americano que estava à mesa que nós brasileiros éramos desvirtuados por natureza. Eu, naquele momento ainda sob os efeitos do álcool (não muito, é bom que se diga!) e da verdadeira aula de cultura popular que acabara de presenciar no Largo do Curvelo, quis resumir numa palavra tudo aquilo que nossas elites e os gringos têm muita dificuldade de entender (alguns conseguem, é verdade, mas a dificuldade existe): somos diferentes, porque através de uma mistura de raças que não se esgota temos a mais rica e variada cultura do mundo, quer eles queiram ou não. Nosso desvirtuamento está exatamente neste ponto: passamos de síntese da cultura mundial para nos transformar em algo original. E não estou dizendo novidade alguma, é só lembrarmos de Darcy Ribeiro e a sua tese de que somos desíndios, desafricanos e deseuropeus.

Pois bem, dizia eu que caí na besteira de ter dito o que disse para um estrangeiro. E por quê? Porque o americano, talvez impregnado por sua cultura nacional de colonização e de especialização - o especialista, como se sabe, é aquele que sabe quase tudo sobre quase nada - logo quis me rotular de algo que minha ignorância não me permitiu perceber de primeira. Ele me disse com seu sotaque canhestro que eu deveria ser um seguidor de Oliveira Viana, que só depois que deixei o bar - socorrido por uma amiga - fui saber se tratar de um consultor do primeiro Governo Getúlio Vargas que defendia que uma minoria deveria conduzir o povo (sabe-se lá para onde). Como não sabia de quem se tratava, mas desconfiado de que coisa boa não deveria ser, rechacei a idéia do gringo dizendo que nunca ouvira falar de Oliveira Viana e que tinha o "péssimo" hábito de ter idéias próprias.

Foi muito divertido saber depois, descendo as belas ladeiras de Santa Teresa, que se tratava de um americano e, que quando nos despedíamos, ele tentava convencer sua namorada brasileira de que é moreno. Ora, um branquelo de cabelos claros e olhos azuis querendo convencer uma "morenaça" que é da mesma cor dela, como se isso fosse a prova cabal de que entendia o espírito brasileiro, foi hilariante. Foi exatamente neste momento que entrei com a história do desvirtuamento, porque mesmo ele estudando tudo sobre a nossa história e cultura (e quem sabe se tornar um dia um brasilianista) e querendo se tornar moreno (num processo inverso do seu falecido compatriota Michael Jackson), terá sérias dificuldades para nos entender, simplesmente porque não é brasileiro (e para isso, ressalto aqui, não basta nascer nesta terra).

O americano em particular e seus compatriotas, em geral, me perdoem, mas é muito mais fácil conseguirem se identificar aqui com governantes e pseudo-religiosos que não compreendem a nossa cultura, com tudo de ótimo e péssimo que possuem. Isso vale tanto para os atuais, como para os do início do século XX, que proibiam o samba e a capoeira nas ruas do Rio, e para os frustrados que não se conformam de terem nascido no Brasil.

* Este texto, com modificações feitas agora, foi originalmente escrito entre 1997 e 99. O evento no Largo do Curvelo mencionado no texto foi uma manifestação de músicos, artistas e público em geral contra a proibição de música ao vivo em Santa Teresa pelo então prefeito que prefiro não citar o nome.



Vídeo: "Querelas do Brasil" (Aldir Blanc), com Elis Regina.
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