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domingo, 17 de março de 2019

DECLARAÇÃO DE MALES

Ilustração de Gustave Doré para a poesia O Corvo
(The Raven), de Edgar Allan Poe
Como ainda tenho um bom tempo até 30 de abril para fazer a minha declaração do Imposto de Renda, com fartos bens se compararmos com 90% da população deste país e parquíssimos em relação aos privilegiadíssimos que ocupam 1% dos que por aqui vivem, faturando 36 vezes mais do que a metade do nosso povo, venho aqui para fazer a minha declaração de males e penúrias, perante aos cidadãos de bem. Bem, pelo menos é como se vangloriam para reivindicar para si - e apenas para si, a família, uns amigos e talvez uns conhecidos de seu restrito grupo social - as virtudes mágicas que permitem a abertura de todas as portas da esperança e da ganância. Somente para eles e os seus, é claro.

Terei de perder a vergonha de me confessar egoísta, mentiroso, ridículo, bobo, ingênuo... ou seja, não chego aos pés desses das virtudes mágicas. Com tantos virtuosos, sendo o mais "poderoso" um apologista de crimes hediondos, um deles confessado várias vezes e em rede nacional no Congresso Nacional para o espanto e indignação de uns tantos como eu e aplausos histéricos de milhões, só posso me declarar como o pior dos homens. Não tenho a capacidade, nem de longe, de ser um cidadão de bem, nem sequer de bens achacados sem qualquer pudor de todo tipo de cofre público. Sou muito covarde, admito com pesar, não conseguiria jamais me juntar aos corajosos protetores, na marra e na bala, guilhotina, forca, facada, de comunidades miseráveis do combalido Rio de Janeiro, que se já não tinha prefeito, ganhou mais um desgovernador. De bem, claro, ambos cidadãos de bem. São todos esses de bem e de muitos bens, dos mais variados tipos e tamanhos. Não, não chego aos pés desses sujeitos, eles estão muito acima das minhas possibilidades.

Vejam vocês como procedi quando um deles se aproximou, esquivando-me covardemente. Certa vez, desempregado já há uns 3 meses, numa situação bastante difícil financeiramente, pois ainda não havia recebido nada do emprego anterior, um vereador de uma cidade fluminense me ofereceu a assessoria de uma deputada estadual ligada a ele, desde que eu deixasse para um Queiroz aquela parcela que tradicionalmente tiravam de nós. E eu, infamemente, recusei. Recusei, minha gente, recusei. Não foi por medo propriamente, talvez algo muito pior que faria qualquer cidadão de bem gargalhar da minha cara com o dedo indicador furando um dos meus olhos: achei a proposta indigna. Vejam vocês, indigna! "Como indigna", perguntaria um cidadão de bem, "se você estava desempregado, com filhos pra criar sozinho?" Recusei e preciso confessar, passados já mais de dez anos deste episódio, essa falta, essa falha que cometi. "Imperdoável! Indigno!", eles diriam e podem vir a qualquer momento gritar aqui embaixo da minha janela ou virem como corvos grasnarem nos meus umbrais:"Nunca mais, ouviu? Nunca mais!".

Já fiz coisas que seriam aprovadas por eles, mas não me regozijo, pelo contrário. Neste ponto, sou incorrigível, talvez siga em minha vida por linhas curvas demais para tanta gente reta.

POEMA EM LINHA RETA
(Fernando Pessoa, sob o pseudônimo Álvaro de Campos)

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Veja também:
Encantamento, fanatismo, cegueira
Fábrica de ídolos

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