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quinta-feira, 10 de agosto de 2023

AS VELHAS SENHORAS DO CAMPO DE SANT'ANNA

Foto: Marcus Cinelli
Há certas imagens, passagens, que ficariam mais bem representadas em um quadro. Mas, como não possuo a mínima aptidão para artes plásticas, desafio-me a descrevê-las com palavras. Sim, palavras, este instrumento fascinante e ao mesmo tempo amedrontador que ouso manipular para expressar meus sentimentos-pensamentos.

É muito difícil, mas também - repito - instigador refletir, não como um espelho cristalino e sim como a superfície de um lago turvo, o fascínio que as velhas árvores do Campo de Sant'Anna me exercem. Curioso é que, mesmo tendo passado várias vezes por dentro desse verdadeiro oásis incrustado no centro de um inferno de buzinas, motores e canos de descarga, jamais as havia percebido.

Somente ontem, na hora em que o céu começava lentamente a cerrar seu imenso olho azul, é que reparei. Os portões do Campo de Sant'Anna já estavam fechados e, passando por fora, circundando o grande parque, estava eu a admirar a elegância de seus gatos e a simpática deselegância das cutias nos hiatos entre um balaústre de ferro e outro do gradeado que o cerca. 

Tal qual "una película" - efeito produzido pelo ligeiro passar dos balaústres - vi aquelas velhas senhoras conversando. Recordei-me logo de uma gravura de Dali em que o corpo de uma jovem e bela mulher se funde ao de uma árvore igualmente jovem e bela.

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As velhas árvores do Campo de Sant'Anna são como camponesas perdidas no meio da metrópole: estranhas, magras, descalças, de tez flácida e enrugada e com longas madeixas desgrenhadas. Nada assustador, embora possa parecer se assim descrevo. Elas possuem um porte altivo, trejeitos de damas. Parece que ao longo do tempo foram ficando mais belas, com seus troncos pelancudos, seus cipós a adorná-las, suas folhagens esteticamente desarrumadas.

As solitárias árvores do Campo de Sant'Anna estão lá como "las madres de la Plaza de Mayo": circundando a praça, solitárias, solidárias e belas. Só que ninguém percebe - ou finge não perceber - pois do lado de fora se respira fumaça para se chegar mais rapidamente a lugar algum. No entanto, as velhas árvores não se importam: há belos gramados, lago e bancos para sombrear, e elegantes gatos e desengonçadas cutias para proteger.

Este texto foi o vencedor na categoria Destaque especial (crônica) do Prêmio Palavra do Séc. XXI de 2001, de Cruz do Sul (RS), e havia sido publicado neste blog originalmente no dia 24 de março de 2008.


Obs.: a expressão "sentimentos-pensamentos" usada no fim do primeiro parágrafo já há muitos anos substituí por "pensentimentos".

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2 comentários:

  1. Regina Bittencourtdomingo, outubro 27, 2024

    Gostei do termo "pensentimento". Ótima criação!!!
    Essa crônica havia lido há uns anos e consegui me reportar para o local e vivenciar o paradoxo urbano. Parabéns pelo prêmio!

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    1. Agradeço muito, mais uma vez e sempre, minha amiga. Circundei e tangenciei a palavra "pensentimento" por anos até encontrá-la como se tirasse os excessos de uma pedra para encontrar a escultura que já ali existia. Volte sempre. Bjs.

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