sexta-feira, 24 de julho de 2020

POESIA CANTADA: "O RIO" ENTRELAÇADO À "SEQUIDÃO" *

Quando resolvi gravar em vídeo as melodias que criei para poesias que já havia escrito, meu objetivo maior era mostrar para aqueles que já acompanham e admiram o meu trabalho - e para os que possam vir a gostar dele - como as palavras que já havia juntado e publicado aqui e ali ganharam mais cor, mais vida, outros sentidos até. E fiz em vídeo por ter mais visibilidade - algo mais que uma obviedade - e porque só o áudio não sei como publicar nas redes sociais.

Portanto, estar à vontade ou não perante à câmera do meu celular, erguido e preso por livros e apetrechos ao lado do monitor do meu computador, ter a imagem e a iluminação perfeitas e mostrar a música de uma forma mais correta, com métricas, melodias mais elaboradas, instrumentação, harmonia, arranjos... Nada disso foi - e nem será - prioridade neste caso específico. Mais à frente, caso haja interesse de músicos, atores, cantores, diretores, produtores etc, aí sim pode vir a ser.

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Aqui, cometi mais algumas ousadias, além das já citadas. A primeira foi pegar versos de um poeta que dizia não gostar de música, editá-los na primeira estrofe de uma poesia que adoro há muitos anos: "O rio". João Cabral de Melo Neto é um dos meus favoritos e, apesar de ter sido avesso à música, teve "Morte e vida severina" musicada por Chico Buarque. 

Não criei melodia para os versos escolhidos de "O rio", que relata poeticamente o curso do Capibaribe, da nascente, na Serra do Jacarará (referência que preferi retirar dos primeiros versos), ao mergulho no mar, no Recife. Entrelacei-o - como serpente que os rios também são - aos versos cantados de "Sequidão", poesia que já havia publicado neste blog (retirada tempos atrás), e que precisei mexer minimamente para encaixar na melodia.

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Gostei muito do resultado deste entrelaçamento, por isso o apresento aqui e no YouTube. E mais vou gostar, quando os sons de viola, rabeca, flauta (ou pífano), vocais e percussão que estão na minha cabeça inundarem a "Sequidão". 

Como disse a um amigo recentemente, cheguei a um estágio da minha vida em que - embora sejam mais do que bem-vindas e, por isso mesmo, as busque sempre num primeiro momento e depois também - se as parcerias, interações e interdependências não se concretizam, faço eu mesmo sozinho, com minhas limitações e minhas verdades. Não permitirei mais que meu caudaloso rio seja barrado por diques imaginários. Nunca mais!




Abaixo você ouve a versão que foi ao ar na estreia do podcast Lamascast, com música gentilmente cedida na abertura de Hugo Linns.



O RIO
(João Cabral de Melo Neto)

"Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar...

"... Desde cedo que me lembro,
lembro-me bem de que baixava
entre terras de sede
que das margens me vigiavam.
Rio menino, eu temia
aquela grande sede de palha,
grande sede sem fundo
que águas meninas cobiçava.
Por isso é que ao descer
caminho de pedras eu buscava,
que não leito de areia
com suas bocas multiplicadas.
Leito de pedra abaixo
rio menino eu saltava.
Saltei até encontrar
as terras fêmeas da Mata.

Por trás do que lembro,
ouvir de uma terra desertada,
vaziada, não vazia,
mais que seca, calcinada".

SEQUIDÃO
(Eduardo Lamas)

Caudaloso rio
barrado de repente
por um dique imaginário

Rio perde todo
o seu viço
como a flor
que da manhã
pra tarde
vê as pétalas ao chão
como as folhas
que perderam seu tom vivo
despencam brincando
pelo ar
e pousam como aves
sedentas e suaves
na parca e ardente poça
que ainda não evaporou,
evaporou, evaporou...

Algo se refugiou de mim
Algo se refugiou de mim
Evaporou, evaporou
Sequei
Sequei
Sequei

Quando as solas
de meus pés racharam
a aridez invadiu e
recortou o solo
do meu peito
o ar pesou
e ressecou minha garganta
meus lábios lanharam
e o suor da madrugada
encharcou, inundou
o meu lençol.

O RIO
(João Cabral de Melo Neto)

"De onde tudo fugia,
onde só pedra é que ficava,
pedras e poucos homens
com raízes de pedra, ou de cabra.

Lá o céu perdia as nuvens,
derradeiras de suas aves;
as árvores, a sombra,
que nelas já não pousava.
Tudo o que não fugia,
gaviões, urubus, plantas bravas,
a terra devastada
ainda mais fundo devastava".

* Publicado aqui originalmente em 2016.

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