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quinta-feira, 29 de julho de 2021

O TORCEDOR DE FUTEBOL

Antiga geral do Maracanã lotada. Foto: Custódio Coimbra (O Globo)

"O torcedor de futebol é um passional, um trágico. Diante da derrota ele modula os uivos mais sentidos do seu repertório. Qualquer jogo (do clássico mais importante à pelada mais vira-latas) faz o torcedor sofrer. E digo mais: ele gosta de sofrer e cultiva, com raro deleite, o próprio sofrimento".

Nas pesquisas que ando realizando para dois projetos, colhi este trecho escrito por Nelson Rodrigues e publicado em sua coluna "Meu Personagem da Semana", do jornal Ultima Hora, do Rio de Janeiro, no início de 1961. Em tempos de pandemia e, onde ainda paira algo semelhante à responsabilidade, sem torcedor nos estádios percebemos o quanto ele é fundamental para o futebol. Sua ausência nos jogos torna escandalosa esta importância. 

Nenhum personagem, por mais importante, patético ou heróico, bandido ou melancólico, é mais interessante que o torcedor. Ele não toca na bola em campo, não faz gol, não arruma nem desarruma time algum, não apita o jogo, fica fora das quatro linhas e ainda assim é a verdadeira alma de um clube de futebol. E sem alma, nenhum clube pode almejar glória alguma. Nem mesmo chorar lágrimas de esguicho por suas mais doídas derrotas.

Muitas das melhores histórias que vivi e presenciei nos estádios foi como torcedor ou protagonizadas por um dos milhares que me cercavam, fosse na arquibancada, na geral, cadeiras até mesmo nas tribunas. Faço uma rápida pausa aqui para contar um episódio que presenciei nas cadeiras especiais do Maracanã.

Tarde ensolarada de um domingo dos anos 90, Flamengo x Vasco. Já jornalista, assisto à partida da tribuna de imprensa, para quem se lembra, ficava em meio às cadeiras especiais. O Flamengo abre o marcador com o zagueiro Rogério, no primeiro tempo. À minha esquerda percebo um torcedor rubro-negro mais exaltado, fazendo gestos obscenos e gritando palavrões que eu só conseguia decifrar por dedução e alguma leitura labial, encaminhando-se em direção oposta, à direita das cabines de rádio e TV. Ele se posta em cima de uma espécie de palanque de concreto bem atrás das cabines, balança a genitália, vira-se e balança a bunda para a torcida vascaína. Mais um gesto obsceno final com ambas as mãos e volta eufórico, delirante, para o seu lugar. 

Clássico é clássico, rivalidade é rivalidade e vice-versa. No futebol não existe justiça; no máximo, tem troco ou vingança. Último minuto de partida, Valdir Bigode empata para o Vasco. Aí, já esquecido do que ocorrera anteriormente, vejo um vascaíno vindo do lado direito em direção ao mesmo local em que o flamenguista tinha feito seu show particular como se tivesse sido ele, e não Rogério, o autor da estocada, do golpe, ou melhor, do gol rubro-negro. E, lá, no mesmo palanque, porém rindo, gargalhando, quase dançando da maneira mais desengonçada, o cruzmaltino repete alguns aqueles gestos do rival em direção à torcida rubro-negra. Apesar de ser torcedor do Flamengo, não pude conter a risada juntamente com outros jornalistas e torcedores que presenciaram as duas cenas.

A raiva, as alegrias, as frustrações, os preconceitos, as identificações, mitificações... Todos esses elementos - e outros tantos - o torcedor leva de sua vida cotidiana para o estádio e se revelam sem filtros em galhofa, exaltação, vaia, urros, xingamentos, discriminação, desvario, euforia, choro, risadas, violência. 

Não por acaso, portanto, no livro de minha autoria lançado recentemente pela Cartola Editora, conto algumas histórias baseadas em episódios que testemunhei, e outras que inventei. O torcedor está como o protagonista, ou um dos, em nove dos 19 Contos da Bola. São eles: "O torcedor de videoteipe", "A angústia da espera pelo gol da vitória", "Sinuca de bico", "O doido Cornoió", "Outra bolada certeira", "5 de julho de 1982", "Picolé", "Paixão de extremos" e "Um torcedor volúvel e azarado". Porém, como coadjuvantes, eles ainda estão presentes, da mesma forma apaixonada, inusitada, absurda, trágica, cômica, em quase todos os demais.

Quem ao menos um dia na vida foi torcedor de futebol sabe muito bem do que falo. E certamente tem muitas e ótimas histórias para contar. Algumas das minhas ofereço neste meu primeiro livro sobre o vasto mundo do futebol (e pode aguardar que o segundo já começou - lentamente - a ser escrito). Fica, então, Contos da Bola como sugestão para o dia dos pais. Ou para você mesmo se presentear ou oferecer ou sugerir a quem torce para o mesmo time que você ou para um rival. Este time é tão bom no papel, como no ebook.

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