"A alma imoral" é uma inusitada peça de teatro que precisa ser vista pelo maior número de pessoas possível. Os ensinamentos são tão profundos e certeiros, que a atriz Clarice Niskier se propõe a repetir partes do texto que os espectadores desejarem. A peça encerrou sua temporada no teatro Zimbienski, na Tijuca, no último domingo (16/12), mas voltará em janeiro no Serrador, no Centro do Rio. Só digo uma coisa: quem perder é mulher do padre.
A peça fala basicamente dessa desobediente e rebelde que faz o mundo girar de verdade: a alma. Da tradição que representa o corpo e a traição que significa a alma, o corpo obediente e a alma desobediente. E é um espetáculo que, se não chega a subverter totalmente os preceitos da dramaturgia, desobedece sim muitas de suas "normas". A própria Clarice Niskier fala sobre isso no início da peça quando explica quando e como teve a idéia de levar o livro homônimo, do rabino Nilton Bonder, para os palcos. Ela se indaga como pode não haver ação dramática se dentro dela tantas transformações haviam ocorrido quando leu o livro. E, inspirada (inspiradíssima!) pelos pensa-sentimentos e parábolas do livro, ousou. Com brilhantismo.
Não existe um personagem, é a própria atriz que se apresenta literalmente nua para, com técnicas de interpretação, nos agulhar com verdades tão contraditórias como só o ser humano pode ter naturalmente em si, e construir, destruir e reconstruir ao longo de sua vida. E influir diretamente na vida das pessoas, como fazem há séculos os religiosos. Veja bem, os religiosos, e não as religiões. Ela e Bonder defendem que as religiões complementam-se umas às outras e não conheço uma sequer que não tenha como fundamento o amor. Repito, falo das religiões, dos seus escritos sagrados, e não do que fizeram - e fazem - com elas muitos de seus líderes e fiéis. Nenhuma pode ser apartada da Filosofia. Não tenho religião, creio em partes do que dizem e discordo de outras, penso com a alma, sou portanto imoral. Porém, fico muito à vontade para defender o que acabei de escrever.
Não há um personagem, mas Clarice ocupa todo o espaço cênico com uma apurada expressão corporal auxiliada por um grande pano preto, que serve para os mais variados figurinos. E o momento mais forte é quando ele vira uma burca. O texto é tão bem costurado, tão incômodo, comovente e ao mesmo tempo tão simples que já encomendei meu livro e mais um para dar de presente. Separei duas frases que guardei da peça para encerrar este texto e deixar quem o ler com algumas pulgas atrás das orelhas: "A pior solidão é a ausência de si". "Quantas vezes empreendemos todos os nossos esforços para nada".
Nunca fui músico, embora gostasse de ter sido. No entanto, tenho um amor tão incondicional pela música que tento escrever como se compusesse uma canção. De vez em quando acerto.
Em épocas de vacas magérrimas andei vendendo uns LPs que tinha em casa. Um deles, o primeiro de rock que comprei, sempre me causou arrependimento: "Paris", o duplo ao vivo do Supertramp. Os motivos são obviamente o valor sentimental, e também porque o repassei para um colega do jornal "O Fluminense" com os encartes, com as fotos do antológico show, que me haviam sido dados por Big, meu mais que amigo, um irmão. Quando me dei conta da burrada que fiz, já havia perdido os discos que tantas vezes ouvi com emoção e os encartes, com um papel de qualidade da época do lançamento do LP no Brasil e não o posterior, bem vagabundo, dos tempos do famigerado Plano Cruzado. Agora, com o lançamento do DVD "Live in Paris '79", que já adquiri e vi uma vez, resgato muito daquilo que perdi, vivi e imaginei.
A primeira vez que ouvi um disco do Supertramp foi justamente esse, o mais importante do grupo, um LP duplo ao vivo que registrava uma turnê de 1979 na capital francesa. Lançado em 1980, fui me deparar com ele na casa de um grande amigo no início daquela década. Já conhecia "The logical song" e "Take the long way home", duas faixas que haviam tocado muitas vezes nas rádios FM desde que o LP anterior "Breakfast in America" (1979) havia sido lançado, mas isso só soube alguns anos depois. Nenhuma das outras músicas eu conhecia e fiquei paralisado, querendo escutar sem parar.
Pouco tempo depois teria o meu exemplar, mas com uma pequena decepção: sem os encartes com as fotos do show que havia no disco de Francis, amigo de Kunta, na casa de quem estávamos. A partir daí ouvi aqueles dois LPs uma infinidade de vezes, inclusive em fita cassete, pois o gravara para continuar curtindo no meu velho gravador a pilha nas muitas viagens de carro que fizemos, eu e minha família, a bordo da velha Brasília 1975 de meu pai. Além do futebol e dos grandes amigos que já tinha e os que foram conquistados, foi principalmente a música do Supertramp que me salvou de mim mesmo na adolescência. Época muito complicada que encobriu com uma grande sombra a alegria natural da infância. Meus anos de chumbo tardios.
Escutando quase sempre deitado no sofá ou no chão da sala no moderno aparelho de som que tínhamos em casa, com um headfone confortável e de excelente qualidade, eu podia ouvir detalhes das músicas e da reação do público parisiense. Quantas vezes não me arrepiei com os mesmos pontos do disco, num eterno retorno de emoções. E ficava com aquelas músicas na cabeça o dia todo, mesmo sem entender muita coisa das letras, mas intuía o tema, o ambiente, o som me levava a muitos locais meus que desconhecia e a outros, como Paris, que até hoje não conheço. E aquilo me impulsionou a escrever, algo que já fazia muito esporadicamente, mas que se tornou mais intenso. Só muitos anos mais tarde viria a descobrir que não teria como me apartar disso nunca mais.
Depois de "Paris" comecei a comprar os outros LPs do grupo, porque queria conhecer mais músicas e saber mais sobre Roger Hodgon (composições, voz, teclados e guitarra), Rick Davies (composições, voz, teclados e harmônica), John Anthony Helliwell (sopros, teclados e voz de apoio), Dougie Thomson (contrabaixo e voz de apoio) e Bob Siebenberg (bateria) e a história deles. Não recordo a ordem de aquisição, mas imagino que tenha sido esta: "Even in the quietest moments" (1977), "Crime of the century" (1974), "Breakfast in America" (1979), "Crisis? What crisis?" (1975), "Indelibly stamped" (1971) e "Famous last words" (1982), que acabou sendo mesmo as últimas de Hodgson na banda, para minha tristeza. Nunca consegui encontrar o primeiro, de 1970, que tinha o nome da banda, mas a internet já me permitiu não só finalmente conhecer a capa - que nos 80 já me diziam ter uma flor, mas nunca me mostraram - como ouvir todas as faixas.
Davies e Hodgson sempre casaram perfeitamente suas excelentes vozes desde o início, embora o som do grupo nos dois primeiros discos fosse mais sombrio e bem diferente do que se tornaria a partir do monumental "Crime of the century", o primeiro com Helliwell, Thomson e C. Benberg (como o americano grafava seu nome por estar clandestinamente na Inglaterra) a formar o quinteto titular no coração dos fãs. "If everyone was listening", única faixa não incluída em "Paris" deste LP de 1974 é tão boa quanto as outras sete. Os arranjos muito bem elaborados e as quebras de ritmo no meio das músicas, com uma mescla de jazz, blues, rock e pop, e letras de questionamentos profundos e ótimo humor, para mim sempre foram a grande marca da banda. Soube usar o pop com muita inteligência e originalidade, tanto que não conheço até hoje nenhuma banda semelhante. Se alguém conhecer que me apresente.
Depois que Hodgson deixou a banda ainda comprei os dois LPs seguintes ("Brother where you bound", de 1985, e "Free as a bird", de 87) e o primeiro solo do dono da voz aguda do Supertramp, "In the eye of storm", de 1984, mas nenhum me agradou por completo. Tive depois a oportunidade de ver o Supertramp na Apoteose, em 1988, e Hogdson, no antigo Metropolitan, dez anos depois, mas ficou claro para mim, tanto num espetáculo como no outro, a falta que um faz ao outro.
Supertramp está longe de ser a melhor banda da história, com o passar do tempo ela deu lugar a muitas outras na minha vida e perdeu o posto de predileta para o Pink Floyd já tem muito tempo. Mas ela sempre ficará guardada em mim com muito carinho, pois como disse acima ajudou a tornar a minha adolescência mais tolerável e me abriu muitas portas, de sensações e percepções.
P.S: uma briga judicial ameaça impedir que o DVD continue à venda. Portanto, quem quer adquiri-lo é bom ser rápido.
Ilustrações: capa do DVD "Live in Paris '79"; Roger Hodgson, Dougiew Thomson e John Anthony Helliwell; capa do LP "Paris" e Roger Hodgson e Rick Davies.
Vídeo: "Crime of the century (Hogson/ Davies), Supertramp.
Dizem por aí que o fim do mundo está próximo, mas o mundo já acabou. Vivemos apenas os ecos de um berro muito antigo e os reflexos de um espelho quebrado há muitos séculos.
"Quem canta seus males espanta". Panacéia era a deusa da cura para os gregos, e a Mostra Instrumental com seu nome foi remédio para curar todos os males musicais que assolam - e desolam - rádios e TVs. A massa adestrada por sons pasteurizados vicia diariamente seus incautos ouvidos com melodias e ritmos simplórios, adocicados e ou repetitivos para melhor empobrecer suas vidas esvaziadas.
Quem esteve na última terça-feira, dia 20, no Parque das Ruínas, em Santa Teresa, pôde fugir do óbvio e construir pedra por pedra a sonoridade musical que escolheu para seguir - e se expandir. Quem lá esteve pôde ouvir até a alegria dos passarinhos cantando ao som de sopros, teclados, cordas e percussões e sair com a alma impregnada de música da mais alta qualidade.
Sentiu o lufar e os uivos dos Inventos soprando de e para todos os lados, afastando para longe as nuvens pesadas que se imagina cobrem todo o cenário musical brasileiro da atualidade.
Viu e ouviu a correnteza fluir em rios de sangue a circular em nossas veias e artérias quando os Afluentes fizeram os pêlos do nosso corpo eriçarem nos carregando à deriva com sua força e beleza de tempos e espaços tão próximos e tão distantes. Um rio que trouxe especiarias sonoras de vários países, com muito de suas histórias e culturas.
Viu o mestre Tom Jobim abrir as portas do casarão de Laurinda Santos Lobo para Cole Porter e promover uma nova comunhão de elegância de sons e ritmos ao piano de Deborah Levy, os sopros de Dani Spielman, o "violalino" de Dhyan Toffolo e o violoncelo de Mateus Ceccato.
Teve em mãos a pedra de toque na magia do Pedra Lispe em sua incursão por campinas, ruas e vielas de asfalto, paralelepípedos e terra batida do Nordeste brasileiro.
E assistiu ao despertar de todas as suas pedras com a verdadeira algazarra musical da família Itiberê Zwarg quando a noite chegava e o público exultava o fim de um belo dia, que só se fingiu de feio quando acordou para melhor ficar. Um dia para a memória guardar.
ATENÇÃO: em dezembro, Inventos e Afluentes lançam seus primeiros CDs com shows no Espaço Sérgio Porto. O Inventos, no dia 5, e o Afluentes, no dia 21. Mais que recomendo!
O Centro Cultural Carioca abriu suas octogenárias portas na segunda-feira passada, dia 12, exclusivamente para
Martinho da Vila conceder uma entrevista a uma emissora de televisão para falar
de uma das grandes mulheres da sua vida - provavelmente a maior delas: a Unidos de Vila
Isabel. Tive a sorte de estar presente juntamente com os amigos Paulo Almeida e Alexandre Aquino, que sugeriram que nossa reunião marcada a
princípio para o Grajaú, bairro onde Martinho morou por muitos anos, fosse
transferida para o casarão da Rua do Teatro.
Encerrada a entrevista com o repórter Fabio Judice, o sambista e sua assessora, Rejane, se aproximaram do bar, onde Paulinho já se encontrava. Ao
sabor de uma boa cerveja papeavam animadamente. Sorrateiramente, eu e
Alexandre, que nos encontrávamos no canto oposto, fomos nos aproximando para ao
menos ouvir a conversa. Falavam do Grajaú e do tempo em que o cantor e
compositor vivera no bairro. Paulinho então perguntou ao cantor e compositor se ele já
havia ido ao Samba do Trabalhador, encontro que leva o nome de uma irônica música de Darcy da Mangueira que fez sucesso com Martinho e é comandado por Moacyr Luz todas as segundas-feiras à tarde
no Clube Renascença, no Andaraí.
“Fui uma vez, mas tenho evitado ir a esses lugares. Quero ir
pra ouvir a música, mas toda hora chega alguém pra falar comigo e não consigo ver,
nem ouvir nada. Antigamente, eu ia e quem se aproximava eu falava “sai pra lá”,
“não enche o saco”, “me deixa” (contou rindo e espanando o ar como se fossem
incômodos fãs). Eu fiquei conhecido logo, aí já viu. Mas hoje eu entendo o
outro lado e dou atenção. O cara vai lá, me vê e é a chance que ele tem de
falar comigo, de tirar uma foto, eu atendo. Mas aí não ouço, nem vejo quase nada”, contou.
A conversa animava e ótimo proseador que o poeta Martinho é
prosseguiu: “O problema maior é quando chega o cara que é compositor e vê a
chance de me apresentar um samba dele. Ali, na hora. Eu sou compositor, então, é complicado
pegar música dos outros. Mas o cara não quer nem saber, chega e diz: “Martinho,
fiz um samba que é a sua cara”. Pô, com a minha cara eu já tenho. Mas os caras
não desistem”. Para dar mais vida ao que estava relatando, o sempre sorridente Martinho deu a volta por trás da pilastra entre
mim e ele, postou-se às minhas costas e começou a batucar no meu ombro direito
e a cantar um samba ininteligível no meu ouvido, como se ele fosse um fã compositor daqueles
que o abordam insistentemente e eu fosse ele. “Eu não ouvia o samba do cara e
nem conseguia prestar atenção no que o pessoal estava cantando”.
Então eu disse que se por um lado ele entendia o outro lado,
o outro lado não entendia o dele. “É, mas teve um tempo que eu adotei uma tática. Chegava no lugar fingindo que já estava doidão (e reproduziu cambaleante e com a voz pastosa como fazia), aí os caras desistiam de ficar perto. O problema é que
depois de um tempo eu já não sabia se estava fingindo ou estava doidão de verdade. Aí, eu pensava: “Ih, tá na hora de ir pra casa”, contou, sempre entre risos de todos. Sim, chegara a hora de ir pra casa, com mais uma história pra contar.
Foto: Fabio Judice e Martinho da Vila no Centro Cultural Carioca (Alexandre Aquino) Música: "Samba do Trabalhador" (Darcy da Mangueira), com Martinho da Vila. Veja também: Entrevista: Nilze Carvalho Chorinho Samba matéria
Na tarde do último domingo aproveitei uma brecha no tempo disponível para viver
uma pequena esquizofrenia. Isolei-me do mundo da bola, onde todos pareciam
estar concentrados, para assistir a “Uma mente brilhante” (A beautiful mind, 2001), dirigido por Ron Howard, com Russell Crowe muito bem no papel principal. É um filme brilhante? Longe disso. Mas retrata a história verídica
de um homem brilhante, o matemático e esquizofrênico John Forbes Nash.
Para alguém
como eu, que não tem muita afinidade com os números, o que mais me comoveu na história
desse grande homem não foi aquilo que o levou à glória, a sua profissão, a sua
contribuição para a economia mundial, a sua dedicação obsessiva a uma arte que não
entendo, e portanto estou impedido de admirar profundamente: a matemática. O que engrandece
aos meus olhos o imenso Nash, que é bem retratado com suas virtudes e defeitos
(sua arrogância na juventude é bem instrutiva para quem deseja vencer a
própria), é como usou sua mente brilhante para ludibriar a esquizofrenia e
evitar os eletrochoques e os remédios que o limitavam como grande estudioso de seu ofício e como
homem.
Logicamente
que para isso contou muito com a persistência e o amor de sua mulher, Alicia (interpretada
pela bela Jennifer Connelly), que enfrentou corajosamente todos os gigantescos problemas que se avolumam com a convivência com uma pessoa dificílima por natureza e ainda mais doente. A ela,
Nash dedicou merecidamente o prêmio Nobel ganho em 1994. Além disso, ele tem
grandes amigos (os reais, pois os imaginários se mostraram traiçoeiros). Porém, ele só
se superou porque teve vontade maior que a doença e as ignorâncias – e
arrogâncias – de médicos e psicólogos, ao não se deixar vencer pelo mundo
tortuoso e perigoso que sua brilhante mente criava e tornava real a seus olhos.
John Forbes Nash é mais que um artista dos números, é um artista que enfrentou e recriou a própria
mente.
Ilustrações: cartaz brasileiro do filme "Uma mente brilhante" (A beautiful mind, 2001) e John Forbes Nash (Getty Images).
Por qual ou quais motivos você ficaria duas horas numa fila imensa sem ao menos se importar? Poderia citar algumas razões hipotéticas e outras reais, mas fico com o que me aconteceu no sábado passado, dia 3. Tive o imenso prazer de estar acompanhado de pessoas muito queridas esperando - sob sol forte no início e vento e tempo fechado depois - a hora de poder ver a exposição Impressionismo - Paris e a Modernidade, no CCBB do Rio de Janeiro, com paciência e alegria. E não só eu. Inclusive minha afilhada Beatriz, de 5 anos, aguardou sem se impacientar um segundo sequer e também se sentiu recpompensada, tenho absoluta certeza. A sensação de sair de lá depois de tanta espera, com os pés moídos e exausto pelo cansaço físico e mental, foi não só de imenso prazer, mas de ter saído melhor do que quando entrei na primeira sala da exposição que vai até 13 de janeiro.
Difícil não se emocionar diante de alguns quadros. Especialmente os de Pierre-Auguste Renoir me arrebataram, mais até que de Monet, alguns já vistos na exposição de meados da década de 90, no Museu Nacional de Belas Artes. "Jovens meninas ao piano" (1892) particularmente foi a obra que mais me prendeu, não queria sair de frente sem apreender todos os detalhes. Impossível. Mas quem muito quer, deseja o impossível. E ainda ver num quadro ao lado o pequeno Jean Renoir (diretor do filme "A grande ilusão", de 1937) no colo de sua babá (e tia), como se fosse uma foto pintada por seu pai, também me comoveu.
Curioso que leio ainda nas primeiras páginas um livro sobre o designer gráfico Rogério Duarte, e um muito bom texto dele defende a arte como uso e não contemplação. Apesar dos bons argumentos que apresenta para defender a arte no desenho industrial, discordo quando critica a contemplação - guardando as devidas contextualizações -, porque a arte modifica, melhora, eleva, sacode. Diante da arte nenhum razoável espectador é passivo: todos os seus seis sentidos entram em ebulição. Foi assim que me senti sábado no CCBB.
Ilustração: "Jovens meninas ao piano", de Pierre-Auguste Renoir.
Ver-se diante de um instrumento, frente a uma numerosa platéia e ter de compor ali, na hora, as músicas que - todos esperam avidamente - vá engrandecer a noite de cada pessoa presente, é tarefa que só alguém dotado de extrema coragem, concentração e capacidade criativa pode se dispor a fazer. Eu, que aprendi a respeitar todos os meus fluxos criativos e a ter paciência para aguardar as dores do parto para manusear e trazer à luz meus pensa-sentimentos, talvez tenha é arrumado uma desculpa elaboradamente convincente para não ter de encarar solitariamente, sem nada previamente em mente e no coração, o terrível olhar esbranquiçado do papel - ou da tela.
Keith Jarrett se propôs a isso mais uma vez, e na última quarta-feira, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, compôs frente ao público músicas que jamais tocará novamente. São natimortas. Sim, algo sempre fica com artista e público, ainda mais se for gravada a apresentação, mas como cigarras, entoam e morrem. Dignamente.
No entanto, em minha memória ficará para sempre a última improvisação da primeira parte do espetáculo. Jarrett tocava e dançava ao piano como um indígena, como foi bem observado - em conexão com o que eu via, ouvia, sentia - pelo meu irmão Bruno Lobo. Em tempos como esses, nos quais os guarani-kaiowás encaram de frente a morte digna, para não viverem a vergonha e a indecência impostas pela expulsão de suas terras, é algo bastante representativo. Talvez o pianista tenha entrado em contato com seus ancestrais, recebido alguma onda magnética solidária dos apaches para tirar das teclas de seu piano - praticamente tocado o tempo todo do meio para a sua esquerda (onde estão as notas mais graves, mais introspecivas) - a música dos índios.
Só faltou fazer chover.
E me fez tremer ao pensar no papel - e na tela - em branco. E no prometido suicídio coletivo dos índios.
Escolhi - ou fui escolhido para - trilhar um caminho árduo, difícil, aquele que muitos sequer passam perto, o que invariavelmente leva às profundezas do ser, lá onde quase ninguém quer ir, nem saber o que há. Mas é onde cada um verdadeiramente é. Com tudo o que há de mais belo e mais horrendo.
Vou na contramão, mas é a escolha, não há volta. Acho que por isso tenho grande afinidade com quem fala sozinho e quem tem sérias divergências com o espelho.
Ilustração de John Tenniel para o clássico "Alice através do espelho", de Lewis Carroll. Vídeo: "Espelho" (João Nogueira/Paulo César Pinheiro), com João Nogueira.
CENA 1: dois meninos, um de 8 e outro de seis anos, sentados no chão, assistem à TV. Propaganda com imagens de dribles e gols: “Futebol ao vivo, amanhã!”
Os meninos se olham, levantam-se rapidamente, pegam a bola, improvisam uma baliza entre dois pés da mesa da sala e começam a jogar, um na linha, outro no gol. “Gol!”
CENA 2: os mesmos dois meninos, sentados no chão, assistem à TV. Propaganda com imagens de um jogo de basquete, com jogadas e cestas espetaculares: “NBA ao vivo, não perca este grande jogo!”
Os meninos se olham, levantam-se com pressa, pegam a bola e começam a quicá-la e arremessar para uma lata de lixo posta em cima da mesa. “Cesta!”
CENA 3: os meninos na mesma posição, novamente vendo TV. Propaganda com imagens de uma partida de vôlei, com defesas e cortadas, grandes ralis: “Vôlei ao vivo na sua tela, hoje às 21h!”
Os meninos se olham, levantam-se correndo, improvisam uma rede na varanda, com um barbante, e começam a jogar. “Que cortada! É ponto!”
CENA 4: novamente os dois meninos vendo TV. Propaganda com imagens de homens se agarrando num ringue, um esmurrando continuamente a cara do outro. Sangue espirrando pra todo lado: “Ultimate fighting, vale tudo pra você. Hoje à meia-noite, não perca!”
O mais novo nem tem tempo de olhar o mais velho, que lhe desfere um soco no meio do nariz e se debruça sobre o irmão, sufocando-o e batendo nele até se cansar.
Será que a forma como Amy Winehouse foi se matando e os “motivos” que a levaram a desistir da vida não são muito semelhantes aos dos outros astros que se foram aos 27 anos, com a única diferença de ela ter sido muito mais exposta do que os anteriores por viver num mundo paparazzo, bigbrotheriano? A degradação de Amy era espiada e transmitida quase diariamente pela mídia. Será que as angústias, dores, depressões e pressões que sofreu não foram tão intensas quanto às de Cobain, Morrison, Hendrix e Joplin? Talvez a ela tenha sido acrescido esse pré-show de Truman que vemos diariamente na internet e na televisão, mesmo que não queiramos.
Que o homem sempre se sentiu atraído pelo escândalo e os
crimes é uma verdade que existe desde que o mundo é mundo. Porém, creio que não
haja precedentes na história dos veículos de comunicação tanta bizarrice e
sangue para alimentar os consumidores sedentos e famintos da vida alheia. A
glamourização do grotesco está nas páginas e telas sendo vendida como o último
grito da moda desde o movimento punk.
Veja na cabeça de Neymar e seus imitadores o resultado da
manifestação daqueles garotos pobres da Inglaterra, que revoltados por não
terem grana pra pagar ingressos dos shows das mega-bandas dos anos 60 e 70
começaram a protestar gritando e xingando contra aqueles que amavam. Primeiro
se tornaram tão ricos e famosos quanto os ídolos e depois foram vendidos em prateleiras
de lojas de vestimentas e supermercados. Che Guevara também sofreu o mesmo
processo depois de morto, mas isso esticaria demais este assunto.
Mas não é só, claro que não. No Brasil, por exemplo, veja
nas bundas e peitos inchados das mulheres hortifrutigranjeiras (mais granjeiras
que frutas e hortaliças) e nas desafinadas e “belas” e “cantoras” que surgem
diariamente o quanto Gretchen, Rita Cadilac e Xuxa foram influentes para as
jovens dos últimos 30 anos. Veja o quanto elas vêm se deformando para ficarem
parecidas com esses grandes exemplos. Veja no fânqui (funk carioca) como o que
de pior existia na música e cultura americanas mais a cultura do tráfico fez
com a cabeça e os corpos de adolescentes dos barracões às mansões nos últimos
20, 30 anos.
Por fim, veja na mídia e nos seus patrocinadores: a bizarrice tem mais valor que a arte.
Não me apego ao livro como objeto. Há quem goste de senti-lo nas mãos, até cheirá-lo. Eu só quero lê-lo. O que me interessa necessariamente é o que ele contém, suas palavras, suas frases, suas idéias, suas imagens.
Com "Gasolina no Incêndio" pretendo provocar quem aqui venha, mexer com os brios mesmo. Incomode-se, reclame e até xingue se achar necessário, mas aqui não cabe a indiferença. Não vou censurar nenhum comentário, mas assuma-se, não se esconda no anonimato (in)conveniente, nem com apelidos irreconhecíveis. A décima-segunda questão-provocação é a seguinte:
Dizem que pedido de amigo é uma ordem. Meu irmão Bruno Lobo me pediu que escrevesse aqui sobre Altamiro Carrilho porque não tem blog (deveria ter, deveria), portanto, a ordem foi dada e já está sendo cumprida. Sempre procurei evitar que o blog virasse um obituário, ainda mais em épocas sombrias como esta, quando no espaço de poucos dias se foram grandes músicos, como o flautista que é tema deste texto, Severino Araújo e Celso Blues Boy, que acabou motivando, em meio à consternação de sua morte, o encontro de amigos que citei na postagem Conexões.
Não desfilarei aqui as virtudes, muito menos a biografia de Altamiro Carrilho, porque isso felizmente alguns sites e jornais fizeram bem, embora seja sempre muito pouco para alguém de uma dimensão incalculável. Queria, mesmo que tardiamente, fazer um agradecimento ao grande flautista por ter com o CD "Flauta Maravilhosa", de1996, tornado mais ameno alguns dos dias mais duros de minha vida. Já conhecia algumas músicas altamiranas até aquele difícil ano de 1998, lembrando que chorinho pouco se toca em rádio - e quase nada na TV - desde sempre e que não havia a internet com toda a expansão que há hoje com acesso fácil a tudo o que se refere a música.
Naquele que foi um dos dois piores anos da minha vida, estando fora de minha casa com minha família por circunstâncias que não vem ao caso comentar - e agradecendo eternamente a hospedagem e a atenção que recebemos durante três messes de dona Lêda Cid Maia e seus filhos - ouvi pela primeira vez um "álbum" inteiro de Altamiro, justamente o citado acima. Foi um bálsamo, que me motivou a comprar posteriormente o mesmo CD e uma coletânea e sempre exaltar a obra desse grandioso músico. Aqui presto minha humilde homenagem e faço o meu agradecimento por ter tornado melhores dias tão duros. Como ele bem disse, em um especial da TV Cultura, seu nome deveria ser Flautamiro. Viva Altamiro! Altamiro vive.
Fiquem abaixo com Altamiro demonstrando todo seu talento e toda sua vitalidade aos 85 anos em show de maio de 2010, com direito a um solo de percursão e bateria de Eber de Freitas.
Recentemente comentei numa rede social sobre um dia ganho por ter lido uma pequena obra-prima, o conto "O Evangelho segundo Marcos", do livro "O informe de Brodie", do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986), e a conexão mental e sensorial que fiz com o filme "Viridiana" (1961), do diretor espanhol Luis Buñuel (1900-1983). Em suma, as imprevisíveis e cruéis conseqüências da caridade cristã. Espero que quem conheça as duas obras venha me dizer se há insanidade, idiotice ou algo perfeitamente pertinente de minha parte. Pois bem, chego hoje em casa, já madrugada, após um ótimo encontro com velhos amigos, incluindo o meu irmão, Léo Neiva, e tenho a surpresa de ver que a locadora havia me enviado durante o dia o documentário sobre o excepcional LP "Who's next", de 1971, da mesma série (Classic Albuns) de "The dark side of the moon", do Pink Floyd, "Kind of blue", de Miles Davis, e outros que não me lembro e ainda não tive o prazer de assistir.
Este sempre foi o álbum que mais gostei do Who, especialmente pela balada-porrada "Behind blue eyes". Porém, só uns poucos anos atrás me detive mais à letra e um verso sempre me intrigou muito: "my love is vengeance that's never free" (meu amor é vingança que nunca é livre, corrija-me algum tradutor se eu estiver errado). Afinal, por mais questionador que seja, minha formação cristã ocidental tem uma força grande em meu sangue e minha mente, algo que por mais que se lute é difícil se desvencilhar. Tradição, cultura, inconsciente coletivo, nada disso se extirpa com facilidade, se é que é possível. Somos todos aqui filhos da pieguice do amor romântico, somos latinos e americanos, brasileiros, frutos da miscigenação do banzo e do fado, do lamento, do choro, da saudade.
Talvez seja, por isso, tão complexo, tão profundo, tão instigante e tão intenso este verso para mim. Como é o título do filme de Rainer Werner Fassbinder (1945-1982), "O amor é mais frio que a morte" (Liebe ist Kälter als der Tod, 1969), que já usei em forma de indagação em alguma poesia ou texto meu que já não me recordo agora. E vejo que tanto o verso da música, como o nome do filme me levam de volta a Borges e Buñuel, mas de forma invertida: nas obras do argentino e do espanhol haveria uma espécie de vingança pelo amor recebido. "O amor é mais frio que a morte" ainda não assisti, está na fila me esperando há anos, como alguns outros desse diretor alemão que tanto admiro e que conta, em apenas 37 anos de vida, com a impressionante marca de 43 filmes (sendo que "Berlin Alexanderplatz", de 1980, tem 15 horas e meia de duração). Porém, essa rede de conexões, tendo Towshend e Fassbinder como fios condutores, foi inevitável nesta alegre e produtiva noite.
Com "Gasolina no Incêndio" pretendo provocar quem aqui venha, mexer com os brios mesmo. Incomode-se, reclame e até xingue se achar necessário, mas aqui não cabe a indiferença. Não vou censurar nenhum comentário, mas assuma-se, não se esconda no anonimato (in)conveniente, nem com apelidos irreconhecíveis. A décima-primeira questão-provocação é a seguinte:
O Brasil é um país de adolescentes. Grande parte tem mais de 30 anos de idade.
"Nilze Carvalho, a volta da menina prodígio" é uma entrevista que fiz com a bandolinista, cavaquinista, violonista, cantora e compositora no campus da UNI-Rio, na Urca, zona sul do Rio de Janeiro, em 2001. Naquele local e naquela época, eu só fiquei sabendo agora, ela já estava arquitetando o grupo Sururu na Roda, do qual ainda faz parte, atualmente com a companhia de seu irmão Silvio Carvalho (voz, percussão e cavaquinho), Fabiano Salek (voz e percussão) e Juliana Zanardi (voz e violão). Este texto abaixo (com mínimas alterações) foi publicado originalmente no extinto site "Papo Carioca".
Ela surgiu como fenômeno musical no início da década de 80, quando com 11 anos gravou o seu primeiro disco (“Choro de menina”), tocando seu bandolim com a habilidade de um adulto, embora já se apresentasse em televisão e rádio desde os seis anos de idade. Gravou clássicos do chorinho, muitos ao lado do conjunto “Época de Ouro”, e se tornou a menina prodígio do gênero em mais cinco LPs e depois sumiu para os fãs brasileiros.
Por onde andava, Nilze Carvalho era uma pergunta que me acompanhava desde que conheci quase que por acaso o seu primeiro disco há apenas dois anos. A resposta veio primeiro com a sua belíssima apresentação na Praça XV, em frente ao Paço Imperial, num sábado de abril. Ela estava por perto e continuava tocando muito bem, já ficara sabendo, e, melhor, estava cantando igualmente.
No entanto, continuava sem saber porque estava tanto tempo sem aparecer, tanto tempo sem dar notícias. E resolvi marcar uma entrevista para esclarecer o assunto e conhecer um pouco mais dessa mulher de sorriso infantil e mãos virtuosas, hoje com pouco mais de 30 anos de idade.
Nilze começou a viajar em 1984, quando com apenas 15 anos apresentou-se na Itália, na França e na Espanha. E, depois de gravar os volumes dois, três e quatro do “Choro de Menina” e os discos em que fez suas primeiras incursões cantando, o “Deixa-me Cantar” (antes do seu lançamento, em 1989, passou 11 meses nos Estados Unidos) e “Apresentação”, passou a ficar mais tempo no exterior do que no Brasil.
De família humilde e tocando músicas pouco valorizadas pelo mercado fonográfico brasileiro – o chorinho e o samba – Nilze não teve como recusar seguidas viagens para se apresentar em casa de shows e restaurantes do Japão, onde acabou gravando um disco. De 1991 a 1997 passou praticamente seis meses por ano no país do sol nascente, sendo que em 1998 esteve na China e no ano passado passou quatro meses e meio na Austrália e um mês na Argentina.
Em 1998, no tempo em que esteve no Brasil, conseguiu gravar o seu primeiro CD, pela mesma gravadora CID dos LPs, o volume quatro da série Chorinhos de Ouro. Nos outros volumes a CID aproveitou gravações dela feitas para os seus primeiros LPs.
Dessas viagens todas, as coisas que mais a impressionaram foram a adoração que os japoneses têm pela música do Brasil e a obstinação deles para aprender a tocar os ritmos brasileiros: “Eles brigam para ficar junto ao palco. Gravam tudo com filmadoras. Alguns japoneses tocam tão bem chorinho, que se você não vir quem está tocando, vai pensar que é um brasileiro”, afirma quem é mestra no assunto.
Embora tenha toda essa experiência, isso não a impediu de voltar a estudar para se aprimorar naquilo que está em seu sangue: a música. Nilze está estudando na UNI-Rio: “A gente precisa estudar sempre e, como sou autodidata, não leio muito bem partituras”.
Nilze reclama um pouco da distância que tem de percorrer de Campo Grande (zona Oeste do Rio), onde mora, à Urca, onde fica a universidade, mas diz que está sendo muito interessante poder se aprofundar no assunto que ela mais entende desde os cinco anos, quando para surpresa de seu pai, o compositor, pistonista e violonista Cristino Ricardo, e de toda família, começou a tocar de ouvido “Acorda, Maria Bonita” e nunca mais parou.
“Na universidade é bom também porque a gente vai tocar em festas e posso mostrar algumas músicas novas e ir, dessa forma, vendo a repercussão, fazendo a divulgação do trabalho”. Trabalho que ela pretende fazer cada vez mais de forma elaborada, meticulosa. Já com um estilo de repertório definido (“quero tocar e cantar sambas antigos, de Ary Barroso, Ataulfo Alves, além de um choro com letra de Klecius Caldas”), Nilze quer trabalhar com um produtor e um arranjador na gravação de seu próximo disco.
Ela tem visto com muito bons olhos o movimento de gente nova no choro, o que pode facilitar a sua permanência por mais tempo no Brasil. Para ela, a música comercial, tipo axé e pagode, está saturando as pessoas, que estão procurando ouvir outras músicas, o que tem feito o choro voltar a crescer.
Nilze, inclusive, esteve em Brasília há quatro anos, num curto período em que esteve no Brasil, juntamente com mais 49 cavaquinistas para a homenagem que a Escola de Choro da capital federal fez a Waldir Azevedo. “Toco mais o bandolim, mas fui de cavaquinho mesmo”. Modéstia de quem é autodidata, canta e toca também violão e, de quebra, percussão.
O fato de ter ficado tanto tempo fora do Brasil também dificultou um pouco a formação do grupo que toca com ela atualmente – “Chamei o pessoal da minha área, como se diz”. Mas, pela exibição e o assédio do público após o espetáculo de abril, já deu para perceber que o time está entrosado e a capitã continua inspiradíssima. Não foi à toa que as pessoas ficaram encantadas com a simpatia e o talento de Nilze – muitas que jamais haviam falar nela, como as crianças de um colégio que passavam com suas professoras para uma visita ao Centro Cultural Banco do Brasil e pararam para sambar a valer ao som da bandolinista.
Tocam com Nilze os seus irmãos Sérgio e Sílvio, na percussão; Pedrinho, que toca violão de sete cordas também com o mestre da flauta Altamiro Carrilho; além de Mequinho, filho de Pedrinho, no teclado e violão; Nilson, na percussão e voz, e Toninho, no cavaquinho. Neste mês, ela e sua turma se apresentaram na Lona Cultural de Campo Grande, com repertório novo, inclusive com composições dela e de seu pai e os maravilhosos chorinhos de Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth, Waldir Azevedo e muitos outros mestres valorizados pelo toque pessoal de Nilze Carvalho.
Fotos: Nilze Carvalho (do site oficial do Sururu na Roda) e reprodução da capa do LP "Choro de Menina".
Vídeo: "Carioquinha" (Waldir Azevedo), com Nilze Carvalho em participação mais que especial em show de Julião Boêmio, no Teatro da Caixa, de Curitiba, em 2010.
Uma das mais cansativas e inócuas discussões de futebol são acerca do jogar bonito e perder x jogar feio e ganhar. Lógico que a vitória é o objetivo de qualquer time decente, mas os que marcam mesmo são aqueles que praticam a arte de jogar bola. Alguns nem precisaram sair com a taça para gravarem seus nomes na história. Exemplos não faltam.
O que mais me incomoda é a descaracterização do futebol jogado no Brasil. Conversava numa rede social com um amigo da boa e velha infância sobre o aniversário da vitória da seleção brasileira na Copa de 94, completada no último dia 17. Dizia a ele que aquela equipe não me trazia qualquer boa lembrança, nem má. Acrescentava: um time acuado, medroso, que optou por jogar no erro do adversário, que sempre era muito bem aproveitado por dois craques: Bebeto e Romário.
Porém, venceu com méritos, embora pelas circunstâncias (calor de mais 40 graus e as condições físicas precárias de dois dos principais jogadores italianos, Baresi e Baggio) levasse uma grande vantagem na final e poderia ter conquistado o caneco com mais tranquilidade, no tempo normal. Ali a seleção não jogou o futebol brasileiro, mas como ganhou veio o enfadonho debate de sempre.
Pelé dribla o goleiro uruguaio Mazurkievski, sem tocar na bola, na semifinal da Copa de 1970
Para mim é simples, quero ver sempre nos times brasileiros o nosso jeito de jogar, aquele que me fez querer ver e jogar futebol todos os dias na minha infância e adolescência. No entanto, a conclusão que cheguei no meio do papo é que se descaracterizamos no dia-a-dia nosso jeito de cantar, tocar, dançar, andar, falar, pensar (?) o futebol não tem como escapar disso. Faz parte da nossa cultura.
Nada a ver com xenofobia, mas sim com a miscigenação antropofágica (se quiserem os modernistas) que sempre nos fez diferentes e um dos mais criativos povos do mundo. Mas o mundo anda cada vez mais pasteurizado e não temos feito muito para fugirmos disso. Em nenhuma área.
Ultimamente, a seleção espanhola tem sido exaltada no mundo todo, e com razão, afinal tem conseguido resultados fantásticos com jogadores excelentes em seu elenco. Mas, por favor, não comparem com o futebol brasileiro.
A Fúria é como uma excelente orquestra sem um solista improvisador. Muito bons músicos, capazes de alguns virtuosismos, mas sempre numa toada (me permitam o termo) mais próxima do Bolero de Ravel – e aqui pego emprestada uma analogia do saudoso João Saldanha. Sempre a mesma melodia, num ritmo crescente da defesa para o ataque que vai se aproximando, se aproximando, se aproximando da meta adversária, com toques e mais toques, até conseguir o gol. Tudo muito correto, limpo, reto, muito bem ensaiado, mas sem a quebra (ou requebro) de ritmo, a inventividade, a surpresa, a magia.
O Barcelona se diferencia da seleção espanhola porque tem um solista genial, Lionel Messi. E o futebol brasileiro, quando jogado de acordo com suas características históricas, tem pelo menos três, mesmo que haja um que se sobressaia. E joga ora em toques rápidos ou lançamentos, ora com cadência e dribles para segurar o jogo ou surpreender a marcação adversária.
O drible é o solo, a improvisação, a fantasia em meio à harmonia e à melodia. A Fúria tem ótimo arranjo, bela harmonia, excelentes instrumentistas, mas lhe falta o toque do gênio, do craque, daquele que inventa o que ninguém espera, que sola improvisadamente num determinado momento, de surpresa, mesmo que não seja gol - vide várias jogadas de Pelé em 1970 reprisadas milhões de vezes na TV sem que a bola tivesse ganho a rede adversária.
Não me ufano como qualquer Dom e Ravel cantando “Eu te amo, meu Brasil” apenas porque a seleção do meu país ganhou. Eu quero ver um time com a nossa marca, o nosso jeito. Porém, admito, talvez isso seja saudosismo, afinal já não somos mais os mesmos faz muito tempo.
Vídeo: "Bolero", de Maurice Ravel, com a orquestra dirigida pelo maestro alemão Andre Rieu.
Se algum dia me vir muito eufórico, embriagadamente espargindo felicidades, desconfie. Desconfie seriamente. Por trás de tanta alegria certamente haverá uma melancolia, uma angústia latente me agulhando. Sou bem comedido nos momentos felizes. Isso só se vê no olhar e num breve e sincero sorriso.
No início dos anos 80, estava eu e amigos conversando na rua Grajaú sobre o que mais gostávamos de falar: futebol. Uns sentados no murinho da casa de um deles, outros no chão, mais alguns de pé ou agachados, contavam sobre jogos do passado que tinham visto ou se lembravam de terem ouvido no rádio ou lido em jornais, revistas ou livros. Naquele quase atropelo de vozes empolgadas e nostálgicas consegui contar a minha história.
"Lembro de um Fla-Flu de 76 ou 77 em que o Flamengo ganhou de 3 a 0, no Maracanã, com três gols de um cara chamado Kalu. Ele era formado no Flamengo mesmo, saiu de campo como herói, e eu fiquei achando que seria o parceiro de ataque ideal pro Zico. Mas pouco tempo depois, não sei por quê, venderam o cara pro Santos e acho que depois ele foi pro México e sumiu. Esse jogo foi num sábado à noite e ouvi no rádio na casa dos meus avós (maternos) em Olaria."
Ninguém se recordava do jogo. De todos presentes, achava que só um grande e eterno amigo tricolor poderia se lembrar, mas nem ele.
Meados dos anos 90, já jornalista e trabalhando na área esportiva, conversava com colegas na redação sobre jogos antigos e contei a mesma história. Ninguém sabia absolutamente nada sobre aquele Fla-Flu.
"Mas não tenho certeza de que essa partida aconteceu. Acho que sonhei com ela e com esse cara, o Kalu. Tem coisas na minha memória que não sei se aconteceram mesmo ou se foram sonhos."
Nas vezes em que trabalhei no Jornal dos Sports, principalmente na primeira (entre janeiro de 1990 e agosto de 1991), em que pude várias vezes passar muito tempo no arquivo pesquisando edições antigas por conta própria ou para alguma matéria ou ficar conversando e aprendendo com o grande Geraldo Romualdo da Silva, infelizmente já falecido, perdi a chance de verificar se essa partida havia mesmo existido.
No entanto, primeiramente num livro de Roberto Assaf e depois, com a internet, já nos anos 2000, pude constatar que, apesar de algumas imprecisões da minha memória, aquele Fla-Flu não foi sonhado. Ela me voltou no fim do ano passado ou início deste quando Arthur Muhlenberg publicou no seu blog no Globoesporte.com, uma foto do time de juvenis rubro-negro na época de Andrade.
Kalu havia sido companheiro do Tromba e foi aí que vi seu rosto pela primeira vez. Achei essa foto de novo no site "O Historiador", de Marcelo de Paula Dieguez, mas não é ela que publico abaixo, pois consegui outra com o próprio Kalu, em que ele está com três jogadores que se sagrariam campeões mundiais em 1981.
Pesquisei muito até encontrá-lo, e fiquei sabendo por ele que antes daquele Fla-Flu tinha acabado de voltar de empréstimo de seis meses para o Fluminense de Feira de Santana (BA) e que acabou sendo escalado por Claudio Coutinho porque Luizinho Tombo se recusou a jogar sem contrato no dia do jogo e Marciano, reserva imediato, estava machucado.
Em pé: Ronaldo, Júnior, Amaro, Gaúcho, Brochado e César. Agachados: TITA, ANDRADE, Renato, ADÍLIO e KALU.
A partida foi realizada no dia 5 de fevereiro de 1977, um sábado à noite, marcava a estreia de Carlos Alberto Torres com a camisa rubro-negra no Maracanã, e acabou sendo também a de Tita no time profissional, e terminou 3 a 1 para o Flamengo, com dois gols de Kalu (e não três como imaginara) e outro de Luiz Paulo. Para o Flu marcou o meu primeiro ídolo no futebol: o argentino Narciso Doval, ex-Fla.
No entanto, isso só soube agora, buscando mais informações sobre aquele jogo. E sobre Kalu, que tinha apenas 19 anos na época (eu tinha 10), achei-o agora, aos 55, em Cancún, no México. Falei com ele por telefone na última sexta-feira, e ele me confirma que o site Flaestatística está certo em um ponto: ele estreou justamente neste Fla-Flu. Porém erra em outro: ele não nasceu em Barra Mansa (RJ), mas em Volta Redonda (RJ), onde sempre vai, quando vem ao Brasil.
Kalu pouco ficou no clube do coração fanático de seu falecido pai, sendo que a sua última partida pelo clube da Gávea foi apenas um mês e dez dias depois (no dia 15/3/1977). Foram somente sete jogos com a camisa rubro-negra e dois gols, justamente aqueles do dia em que foi o grande nome do Clássico das Multidões. Depois ele foi para o Santos, na negociação que trouxe Claudio Adão para o clube da Gávea.
"O Coutinho era apaixonado pelo Cláudio Adão", disse, sem qualquer amargura.
Kalu disputou o Campeonato Paulista daquele mesmo ano, e posteriormente foi para o León, do México. Jogou em outros times mexicanos e acabou encerrando a carreira aos 28, 29 anos, desiludido com os dirigentes do país onde vive que o impediram de se transferir para o Málaga, da Espanha.
Hoje ele vive em Cancún, mais precisamente em Playa del Carmen, na Riviera Maia, onde é dono de um restaurante e sócio de um hotel. A entrevista que fiz com ele contando detalhes daquela partida, com uma deliciosa história ocorrida um dia antes, quando ele nem sabia que jogaria, será publicada durante esta semana no Globoesporte.com. Veja aqui!
No próximo dia 8, quando Fla e Flu se enfrentarão pelo Campeonato Brasileiro, haverá uma grande celebração pelo centenário do clássico que começou 40 minutos antes do nada, segundo definição de Nelson Rodrigues. Poderia lembrar aqui dos vários que presenciei ou me recordo...
... como o primeiro que ouvi, o da final do Carioca de 73, quando o Tricolor venceu por 4 a 2 e quis jogar minha camisa do Flamengo pela janela; ou o da Zicovardia de 76, quando o Galinho fez quatro na Máquina de Rivelino, Paulo César, Doval e companhia, que também ouvi pelo rádio; ou os que vi no Maraca, como os que o Flu ganhou, em 1978 por 2 a 0 e em 88 por 1 a 0, quando o Fla já era campeão da Taça Guanabara; ou o que levei uma baquetada de um tricolor menor do que eu na arquibancada do Mario Filho e nada pude fazer por estar com a camisa do meu time no meio da tricolada, no jogo em que Zezé Gomes "venceu" Zico, por 2 a 1, em 81, ano em que o Fla deu o troco, por 3 a 1, com um gol antológico de Lico; o olé rubro-negro de 82, com 3 a 0 no primeiro tempo e um torcedor tricolor invadindo o campo implorando para que Zico, Júnior, Andrade, Leandro, Tita e companhia parassem com a humilhação (deu certo, não houve mais gols); ou os decisivos gols de Assis em 83 e 84 (estava no estádio neste segundo); podia falar do empate com o chutaço de Leandro em 85 ou da despedida oficial de Zico no Fla, naqueles 5 a 0 em Juiz de Fora que assisti pela TV; a final de 91 que para mim serviu de vingança por 73; o gol de barriga de Renato em 95, que ouvi entre muitas interrupções dramáticas por causa da chuva, do local distante em que me encontrava e do rádio de má qualidade que tinha na época...
Porém, fico com o Fla-Flu quase esquecido de um herói quase esquecido, que tive o imenso prazer de reencontrar.
FICHA TÉCNICA
FLAMENGO 3 X 1 FLUMINENSE
Amistoso
Data: 5/2/1977
Local: Maracanã
Público: 20.162 pagantes
Árbitro: Arnaldo César Coelho
Gols: Luiz Paulo, aos 14 minutos do primeiro tempo; Kalu, aos 43 do primeiro e 44 do segundo tempo para o Flamengo, e Doval, aos 43 do segundo tempo, para o Fluminense.
Flamengo: Roberto; Júnior (Dequinha), Rondineli (Paulo Roberto), Carlos Alberto Torres e Vanderlei; Merica, Dendê e Adilio; Tita (Júlio Cesar), Kalu e Luiz Paulo. Técnico: Claudio Coutinho
Fluminense: Félix; Rubens Galaxie, Edval, Jorge Luís e Carlinhos; Cléber (Arturzinho), Wílson Guerreiro (Zé Maria) e Erivelto (Geraldão); Paulinho, Doval e Dirceu. Técnico: Mário Travaglini.
Fotos: Kalu concedendo entrevista antes de um jogo no Maracanã (o repórter provavelmente é Luiz Orlando - ex-empresário de Túlio Maravilha - da Rádio Mauá), o time juvenil (hoje corresponde ao júnior) de 1976 do Flamengo e reprodução do jornal O Globo com a matéria sobre o Fla-Flu em que brilhou (arquivo pessoal).
Nada melhor do que ter uma tese reforçada por um mestre. Mesmo sem saber que eu existo, ou mesmo o que escrevi aqui no blog dias atrás (A Música é Interdisciplinar), um dos maiores compositores da história da música brasileira, João Bosco, disse que é preciso se dar mais atenção à questão educacional da música em bela e didática entrevista a Roberto D'Ávilla que foi exibida em sua primeira parte neste domingo na TV Brasil - prossegue no próximo domingo e eu mais que recomendo. Ele mencionou este pensamento logo após dar uma pequena aula sobre o samba sincopado, afirmando que a "sílaba forte" do batuque não é uma batida, mas o silêncio. E completou: "Isso é Matemática e Filosofia".
Obviamente que esta conexão (tudo a ver com o nome do programa!) me fez ficar com olhos, ouvidos, todos os sentidos vidrados na entrevista que peguei já iniciada e bem nesta parte que citei. Entre tantas outras pequenas lições que deu em menos de uma hora, destaco aqui mais uma: a de como João Gilberto - a quem muito respeito, mas de quem não sou grande fã - revolucionou o violão. Bosco mostrou no seu violão como seu xará baiano transpôs para as cordas o que anteriormente apenas instrumentos de percussão faziam. Para ele, João Gilberto reinventou esse instrumento tão identificado com a riquíssima música brasileira. E lembrei de um show que assisti em Salvador, no iniciozinho de 2006, no qual um violonista que infelizmente não me recordo o nome deu uma aula-espetáculo parecida, explicando como João Gilberto mudara o andamento do samba e chamando a atenção para o quase sussurrar de seu canto. Esqueci o nome do professor, mas não da aula.
Mas voltando ao outro João, Bosco também falou de Dorival Caymmi, que tinha a capacidade de transformar seu violão de acordo com o cenário que criava para suas músicas: praieiro, urbano ou de terreiro. E relatou também como, sendo um anônimo rapaz de Ponte Nova (MG), estudante de Engenharia em Ouro Preto (MG) no fim dos anos 60, reuniu coragem para ir até Vinicius de Moraes, que estava hospedado num hotel na cidade histórica mineira, para mostrar suas músicas, logo fazer uma parceria com o poeta na mesma madrugada e as conseqüências daquele dia.
Algum tempo depois, no início dos anos 70, Vinicius o chamou em sua casa no Rio para que João Bosco e seu grande parceiro, o estudante carioca de Medicina Aldir Blanc, apresentassem seus trabalhos a um grupo que tinha, entre outros, Tom Jobim, Chico Buarque e Toquinho. A pedido de Roberto D'Ávilla, João tocou inteira uma das músicas que tocou naquele dia: Agnus Sei. Gostaram tanto, que ele a gravou no Lado B de um compacto distribuído pelo jornal O Pasquim, tendo no Lado A a então inédita "Águas de Março", de e com Tom Jobim.
Sempre que ouço Agnus Sei, prestando muita atenção à poesia de Aldir, fico imaginando por quantos lugares e tempos na História música e letra percorreram até desaguarem na maravilhosa composição dessa dupla. E vou aprendendo assim mais algumas das lições de João. Foto: Capa do compacto lançado pelo jornal O Pasquim no início dos anos 70, com Tom Jobim num lado e "o tal" de João Bosco no outro. Vídeo: "Agnus Sei" (João Bosco/Aldir Blanc), com João Bosco. Veja também: Reencontro com Lobão Para Milton e nossos amigos