terça-feira, 14 de janeiro de 2014

ANIMA, A MÚSICA DESPERTA

A matéria jornalística abaixo foi feita em meados de 2001 para o extinto site Papo Carioca, mas nem chegou a ser publicada. Pela primeira vez ela vai ao ar, já com o Anima em formação muito distinta daquela época, com mais três CDs lançados (Amares, de 2003, Espelho, de 2006/2007, e Donzela Guerreira, de 2010) e ainda mais premiado. Estive pessoalmente com o grupo logo após a apresentação que fizeram no iniciozinho do primeiro dia do Rock in Rio daquele ano. Por acaso, eu os vi saindo detrás do Palco "Raízes", me aproximei, me apresentei e peguei os contatos de Valeria Bittar e Luiz Fiaminghi, que são os únicos remanescentes. Meses depois, após alguns contatos por telefone, em meio à agenda cheia de shows deles, obtive os depoimentos do casal por intermédio do e-mail. 
Aos que são fãs do grupo - e os que se tornarão - finalmente aqui está um trabalho que adorei fazer e que - creio - não poderia se perder ou ficar guardado em meus arquivos:
 
     Em linhas gerais, o ANIMA se apresenta nos cuidadosos livretos que acompanham, ou melhor, envolvem os seus dois CDs (as produções independentes "Espiral do Tempo", de 1997, e "Especiarias", de 2000) como um conjunto de músicos que surgiu com a intenção de interpretar música renascentista e barroca européia, mas que com o tempo foi incorporando um cheiro popular próximo e distante. Unindo instrumentos aparentemente incompatíveis, como o imponente cravo à popularíssima e brasileiríssima - mas não menos bela - viola caipira, a alma híbrida desses músicos se mostra formada por seus sons ao mesmo tempo espantosos e belos, sofisticados e simples.
     De todos os textos encontrados nos livretos, o que melhor define a música do ANIMA talvez seja o mais subjetivo, o assinado por Rubem Alves no primeiro CD: "A música do ANIMA faz despertar uma beleza adormecida que morava no meu corpo sem que eu soubesse".
     Na estrada (em todas as possíveis e imagináveis) desde 1988, o grupo que tem sede em Campinas, mas olhos, ouvidos, coração e alma em locais e tempos tão distantes e tão próximos, passou no início deste ano pela experiência inédita de encarar um festival de rock: o Rock in Rio, em janeiro. E, mesmo com todas as dificuldades que encontraram, agradaram em cheio a um público carente de coisas novas, diferentes. Ou, como bem diz Rubem Alves, ávido por descobrir sua própria beleza adormecida por décadas de pasteurização industrial da música em rádios e TVs.
     Com atividades profissionais paralelas e apresentações do ANIMA passando por Campinas (SP), João Pessoa (PB) e Paraty (RJ) nos últimos meses, os seis componentes atuais do grupo não puderam se reunir para responder em conjunto as perguntas da entrevista feita por intermédio do correio eletrônico. Mas o casal formado pela flautista Valeria Bittar e pelo rabequeiro Luiz Henrique Fiaminghi atendeu simpaticamente ao nosso pedido para que ela fosse publicada antes que viajassem para os Estados Unidos, onde participarão de um festival na Califórnia (ver no fim da entrevista).

Ivan Vilela, José Gramani, Luiz Fiaminghi, Dalga Larrondo,
Patricia Gatti, Valeria Bittar e Isa Taube. (animamusica.art.br)

Dá para fazer uma comparação do trabalho de vocês com o idealizado e promovido por Ariano Suassuna com o Quinteto Armorial. Porém, nota-se que vocês foram além nas pesquisas musicais. Gostaria que vocês fizessem uma avaliação sobre essa afirmação (inclusive se procede!) e citassem outras referências pelo mundo afora para a música de vocês.
Com certeza, o trabalho desenvolvido pelo Armorial e Suassuna na década de 70 é uma grande referência para todos que trabalham com cultura brasileira agora, e será por muito tempo. A valorização de instrumentos típicos brasileiros, como a rabeca e a viola caipira, além da utilização da linguagem modal como um dos meios de ligação entre a Idade Média ibérica e as raízes brasileiras, que é uma das bases para a criação da sonoridade do ANIMA, já eram também utilizados conscientemente pelo Movimento Armorial. Também nos anos 60/70 estava ocorrendo na Europa um dos mais importantes movimentos de revitalização da “performance musical” no Ocidente. A música antiga tocada com os chamados “instrumentos
originais” ou “instrumentos de época”, movimento que está muito bem estudado por um de seus principais integrantes, Nikolaus Harnouncourt, em seu livro “O Discurso dos Sons”.
O ANIMA foi um grupo que se propunha, em suas origens há quinze anos enfocar a prática da música antiga por este viés. Depois de alguns anos, a partir de 1992, o grupo caminhou para outras direções, incorporando outras práticas musicais, principalmente a da música brasileira não direcionada para o grande mercado fonográfico, sempre passível de uma grande pasteurização para enquadrar-se nas regras do mercado.
Outra vertente importante do trabalho do grupo é a pesquisa da música de tradição oral e o elo  destas tradições, notadamente a brasileira e a medieval ibérica,  como fator de criação de arranjos coletivos onde a experiência musical de cada integrante do grupo é fundamental para um trabalho que se propõe realizar sem uma direção musical centralizadora.
Acreditamos que cada instrumento que é incorporado ao nosso instrumental, carrega em si mesmo um emblema da cultura de onde provém, mesclando-se com outros diferentes, muitas vezes até aparentemente antagônicos, como é o caso do cravo e da viola caipira (cultura erudita/corte versus cultura popular/praça), mas que dentro da linguagem do grupo se completam, criando um novo patamar de conexões sonoras. Se examinarmos como se foi desenvolvendo a linguagem do grupo, verificaremos que acreditar neste valor intrínseco de cada instrumento (e é claro no músico que o faz falar), foi fundamental para o estabelecimento de elos que intuitivamente os músicos estavam procurando: quando o nosso querido  Zé Gramani, integrante do grupo, falecido em 1998, trouxe a sua primeira rabeca ao grupo, imediatamente abriu-se vários pontos de conexão com diversas tradições musicais que até hoje servem de guia para nosso trabalho. Muitos destes encontros acontecem por acaso ou talvez nem tanto assim, a sincronicidade existe.

Como e onde vocês buscam essas músicas que muitas vezes ficaram esquecidas e perdidas no tempo (algumas delas passadas oralmente de geração para geração)? Vocês pretendem ampliar o espaço de composição própria nos próximos CDs?
As fontes são várias. As pesquisas de Mario de Andrade são sempre uma grande referência para nós, um exemplo. Do lado da música européia, existe muito material publicado por medievalistas nos últimos 30 anos. Cada um do grupo contribui muito também. Não somos muito de buscar tudo nos livros, mesmo porque o que nos interessa é levantar material para criar outras coisas a partir daquilo. O Ivan Vilela e agora o Paulo Freire, trouxeram, como violeiros, toda a vivência que nos aproxima da tradição popular, e esta transmissão direta foi muito importante para o grupo.


    De "Espiral do Tempo" para "Especiarias", além da perda de José Gramani - a quem o grupo dedica o segundo CD - o ANIMA trocou de violeiro, com a saída de Ivan Vilela e a entrada de Paulo Freire. A importância de Gramani para o ANIMA, como o introdutor das rabecas no lugar dos violinos, está no texto que Valeria assina em "Especiarias" em homenagem ao companheiro:
     "... O Zé Gramani era um grande violinista. Dizia que aprendeu música nas pescarias com seu pai, procurando minhocas para isca, e com sua mãe, colhendo flores para fazer arranjos.
     "Quando o Gramani começou a tocar as rabecas brasileiras no ANIMA e a compor música para cada uma delas, fomos percebendo que estava tudo lá: nas minhocas, nas flores, no riacho, nas rabecas, no zarb, nos seus contrutores (de instrumentos), no Zé, no ANIMA, em cada um de nós..."

Como vocês  superaram as mudanças ocorridas no grupo do primeiro para o segundo CD?
Cada mudança é um desafio. Considerando somente a parte musical da questão, elas contribuem para que o grupo cresça em busca de uma identidade não rigidamente associada aos músicos que participam deste ou daquele trabalho, mas que se desenvolva para uma linguagem de grupo, sem desconsiderar a individualidade de cada um, que é tão marcante ao ponto de que, cada mudança, transforme o grupo em um novo grupo. Dá pra entender? Talvez cada espetáculo seja um passo de superação, mas é preferível pensar em mutação.

Vocês foram muito prejudicados pelo som na apresentação do Rock in Rio, mas a receptividade do público foi muito boa. Que avaliação vocês fazem da participação no festival?
Num evento desta natureza, com proporções fora do comum, é previsível que alguns problemas ocorram. O que não esperávamos, no entanto, é que tantos problemas com o som ocorressem ao mesmo tempo. Retorno, PA, sem falar na qualidade do som. Por outro lado, sabemos que o som acústico do ANIMA não é fácil de ser trabalhado, especialmente em lugares abertos como foi o caso da Tenda Raízes. Pensando nisto, levamos conosco o nosso técnico de som, Murillo Correa, de Belo Horizonte, que tem vários anos de experiência em sonorização de grupos acústicos,  como  o Uakti. Como as bruxas estavam soltas naquele dia, um vento danado (que atrapalha a leitura dos microfones), muita microfonia etc tivemos que manter uma tremenda concentração, tocando praticamente sem escutar os outros companheiros, para estabelecer uma comunicação com o público, que foi extremamente receptivo, apesar dos problemas. Isto foi muito positivo para nós, já que a carreira do ANIMA se fez principalmente em teatros fechados e salas de concerto, o que é uma realidade muito diferente da que se encontra em um espaço como as Tendas do Rock in Rio.
Para nós isto é a constatação de que o público - não importa qual classificação se queira dar a ele: erudito, popular, roqueiro etc - só quer mesmo é estabelecer um canal de comunicação com o artista, e isto depende principalmente deste último, que tem que superar todas as adversidades que por ventura se imponham entre ele e seu público, desde pessoais até exclusivamente técnicas. Também foi uma grande experiência para nós, e servirá, sem dúvida, de referência para uma próxima que o grupo se apresente nesta situação.


Deu para notar na apresentação de vocês um trabalho cênico  muito integrado com as músicas (e até uma brincadeira com os roqueiros feita por Isa e Paulo na embolada "Solta o Sapo"). Isso é elaborado ou surge no momento? Algum de vocês fez teatro? Já trabalharam para alguma peça, apresentação de dança, cinema ou programa de TV? O que acham da conjunção de diversas formas de expressão artísticas?
Não, o trabalho cênico é uma forma importante para estabelecer a comunicação com o público. Para a apresentação do Rock in Rio, contamos com a ajuda da atriz e diretora de teatro Raquel Araújo, da EAD (Escola de Artes Dramáticas), da USP, São Paulo. O bom da Rachel é que ela nos faz enxergar a dramaticidade de nossos arranjos musicais e trabalha, cenicamente, o puro material sonoro se baseando na comunicação do momento de interpretação entre os músicos e entre os músicos e o público. Um dos projetos do grupo é de incorporar este trabalho e desenvolver toda a criação dos arranjos musicais também voltados para a parte cênica. É um projeto complexo, mas a pequena experiência do Rock in Rio nos mostrou que pode ser muito gratificante artisticamente falando.
Um dos trabalhos do Dalga (João Carlos Dalgalarrondo, percussionista do grupo) é com Teatro Musical e espetáculos de percussão tipo “one show men”, onde a cena serve de motivação para os quadros musicais. Ele é um gigante nisto, além de ser um grande “zarbista”.

     Os instrumentos utilizados pelos integrantes do ANIMA e a voz de Isa Taube são um capítulo a mais nessa rica história musical. Vários deles são contruídos sob encomenda especialmente para os músicos do grupo nos mais variados lugares do Brasil e do mundo. Alguns exemplos: o bendir utilizado por Dalga Larrondo é uma cópia de um modelo turco feito por António Gamez, de Madri (Espanha), em 1994; uma rabeca usada por Fiaminghi foi construída por Mestre Davino, de Cananéia (SP) e outras duas por Nelson da Rabeca, de Marechal Deodoro (AL); o cravo de Patricia Gatti foi construído por Abel Vargas, de São Paulo, em 1994, segundo Christian Zell, Hamburgo, 1741; duas violas de 10 cordas de Paulo Freire foram construídas por Vergílio Lima, de Sabará (MG); uma das flautas doce de Valeria foi construída por Helge Stiegler, da Áustria, em 1999, segundo modelo de Jacob van Eyck, no século XVI. Isso sem falar no mejuez, tradicional instrumento de sopro sírio de autor anônimo e uma kuluta tradicional da tribo Kalapalo e outra da tribo Mehinaco, ambas do Alto Xingu (MT).

O que cada um de vocês costuma ouvir em casa, quais músicos?
Eu (Fia) sempre ouvia muita música, de todo o tipo, mas principalmente a música antiga, que é a minha formação (estudei violino barroco). Atualmente, quem comanda o toca-disco é meu filho de seis anos, eu não tenho muito espaço aqui em casa. Ouvir música tem isso: ocupa espaço, e é um espaço que você necessariamente divide com as pessoas que moram com você. Eu adoro que meu filho escolha a música que ele quer ouvir e ouço junto com ele, com o maior prazer.
Eu, Valeria, mulher do Fia, ouço muito música medieval (talvez pela minha formação), Romantismo alemão em pequenos grupos de câmera - tenho dificuldade com orquestras grandes, música folclórica e popular (jazz, rock, MPB) de todas as partes do mundo (Acho que o Fia também), isto talvez com mais freqüência, antes de termos o João.

Para terminar, gostaria que vocês definissem em uma palavra o que significa a música para cada um?
Não podemos falar por seis pessoas, que no momento se encontram cada um num canto com seus trabalhos individuais a partir de quinta-feira que vem (três dias antes da apresentação no dia 24 de junho, em Paraty, como fechamento do evento que comemorou os 30 anos do grupo de teatro de bonecos “Contadores de Estórias”), mas se valer a minha opinião  (Valeria), aqui está ela: desde que escolhi ser música, me encontro com esta pergunta a todo momento. Há algum tempo atrás isto era um problema pra mim, não tinha resposta, como não tinha respostas internas para milhares de perguntas. Mas, há menos tempo ainda, muito pelo trabalho com o ANIMA começar a ter pernas próprias e dele ter nascido da relação de amizade entre nós, e principalmente porque estou mais velha - ainda bem - fazer música para mim é um caminho para me comunicar com as pessoas, e de receber esta vontade de comunicação das pessoas que nos ouvem. Mas um dia, ouvi de uma bailarina de dança Odissi (uma antiga forma de dança da Índia), que no teatro antigo da Índia, que era em forma arena, entre o público e os intérpretes havia uma roda de fogo como símbolo de transformação entre o caminho daquilo que era encenado e o público.  Existe mais coisa além disso no teatro hindu, é claro, mas essa pequena informação, ampliou minha relação com o fazer música, com o estar no palco e ser, juntamente com o público, um dos agentes de transformação e que, aquele momento, pode conter um pouco da intenção do Mistério, no sentido espiritual da palavra. E acho que essa resposta, hoje, me tranqüiliza.

     O ANIMA parte agora para uma temporada no exterior que se estenderá até o fim do ano. Neste mês de julho eles serão os representantes do Brasil no Festival de Verão da cidade de Mendoncino (Califórnia - EUA); em agosto estarão em Buenos Aires, Montevidéu e Assunção; em outubro farão uma turnê pelos Estados Unidos, passando por Washington e Carolina do Sul; e, em novembro, se apresentarão na Womex, a maior feira de produtores da chamada "world music", em Roterdã, Holanda.

O ANIMA:
Dalga Larrondo - percussão (zarb, moringa, bendir, dulcimer, triângulo, pandeiro, tambor de mina, caixa de folia, casco de búfalo, caxixi, maracá, kalimba e berimbau).
Isa Taube - voz
Luiz Fiaminghi - rabecas brasileiras
Patricia Gatti - cravo
Paulo Freire - violas brasileiras (de 10 cordas, de cocho e violaúde)
Valeria Bittar - instrumentos de sopro (flautas doce, kulutas e mejuez)
Endereço eletrônico: www.animamusica.art.br.


Atualmente, o Anima está preparando o seu sexto CD, Encantaria, e tem a seguinte formação:
Gisela Nogueira - viola de arame e violão
Luiz Fiaminghi - rabecas brasileiras e violino barroco
Marlui Miranda - voz, percussão e flautas indígenas brasileiras
Paulo Dias - percussão, organeto e cravo
Silvia Ricardino - harpa trovadoresca
Valeria Bittar - flautas-doce medieval, renascentista e barroca e flautas indígenas brasileiras.

Atual formação: Luiz Fiaminghi, Gisela Nogueira, Marlui Miranda,
Valeria Bittar, Silvia Ricardino e Paulo Dias (animamusica.art.br)

Vídeos: Je Vivroie Liement (Guillaume de Machaut) e Beira-Mar (tradição oral brasileira)
Veja também:
Espantalhos
A música é interdisciplinar
Lições de João (A música é interdisciplinar)
Dois garotos 

8 comentários:

  1. Maravilhosooooooooooooooo!!!! Amo este grupo e lendo a entrevista percebi claramente a entrega verdadeira àquilo que se ama! Eles tocam o coração, tocam a alma!
    Que sorte a sua ter feito esta entrevista. Brilhante. Beijos.

    ResponderExcluir
  2. Sorte mesmo, linda, de uma busca intensa por aquela arte que verdadeiramente nos eleva, nos faz melhor. Anima é Anima, como você muito bem definiu. Beijão.

    ResponderExcluir
  3. Essa experiência do "Anima" me fez recordar de Béla Bartók (1881-1945), compositor húngaro, que, ainda jovem, enveredou pelo interior da Hungria pesquisando o folclore e a tradição oral do povo, para reunir elementos que utilizaria mais tarde em suas composições, o que de fato ocorreu.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Como conversamos ontem, Villa-Lobos realizou trabalho semelhante. Obrigado pela visita e o comentário, meu amigo. Volte sempre. Abs

      Excluir
  4. Alguem teria o contato da Professora Silvia Ricardino , da harpa??

    ResponderExcluir