terça-feira, 20 de março de 2012

OS SOPROS MÁGICOS DE CARLOS MALTA

A música - e a arte em geral - tem um poder inimaginável. Tanto sobre quem a cria e executa, quanto sobre quem a ouve. Nunca consegui aprender a tocar qualquer instrumento, embora tenha tentado o violão, canto com dificuldades (e insisto), não sou crítico musical, mas sei muito bem ouvir, apesar de ter somente uns 30% de audição no ouvido esquerdo. E posso dizer sem medo de errar que o último 16 de março ficará marcado na minha vida como o dia em que assisti à melhor apresentação de um instrumentista ao vivo. Muito bem acompanhado por André Siqueira, na guitarra; Augusto Mattoso, no contrabaixo acústico, e Kesso Fernandes, na bateria, Carlos Malta fez de seus saxofones, flautas, flautim e até apito a extensão de sua alma para deixar extasiada uma platéia de mais de 200 pessoas que abarrotaram a sala Paulo Moura, que fica no Centro de Referência da Música Carioca Artur da Távola, na Tijuca, zona Norte do Rio de Janeiro.

Ficou claro também, durante todo o show e principalmente no fim, que Malta e os outros excelentes músicos perceberam que haviam sido responsáveis por uma noite de gala. Foi uma viva emoção que ia do palco para o público e do público para o palco. Ele próprio me confirmou isso num rápido bate-papo pelo facebook no dia seguinte. Malta credita à Elis Regina, a homenageada da noite, grande parte dessa magia. Sim, o repertório é de primeiríssima qualidade, com as músicas de Tom Jobim, Milton Nascimento, João Bosco e Aldir Blanc, Gilberto Gil, Edu Lobo e Gianfrancesco Guarnieri, entre outros, que se eternizaram na voz de Elis. No entanto, a releitura dessas músicas nos sopros mágicos de Malta as transformaram em novas, renovadas.

Entre tantos destaques daquela noite gostaria de citar um em especial, não só por ser uma das músicas que mais gosto - e já publicada aqui no blog com interpretação de Milton e Nana -, Cais (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), mas pela sensibilidade inteligente do arranjo. Ela inicia com Augusto Mattoso usando o arco e deslizando o dedo anelar da mão esquerda sobre a mesma corda do seu contrabaixo acústico para nos remeter ao som das gaivotas (veja no vídeo abaixo, ele há 12 anos, quando fazia parte do grupo Tríade). Um instrumento enorme, grave, voando por notas tão altas como se fosse uma ave. Um momento sublime que só foi ganhando força e emoção conforme ia sendo executada. A praia, o vento, o saveiro, as gaivotas, tudo está lá naqueles sons. Como faz com outras músicas, Carlos Malta pega o tema, o descontrói e reconstrói como bem entende. Não é uma simples reprodução da melodia original, mas uma releitura, uma recriação genial. E parece que as notas  se desmancham à sua frente, para logo em seguida se rearrumarem e seguirem seu rumo.

Esta memorável apresentação, baseado no premiado CD "Pimenta", de 1999, e que farei de tudo para rever no dia 31 no Largo do Machado, conseguiu superar a do Trio Madeira Brasil e Armandinho, em 2000, no Teatro Municipal de Niterói, que até então era o que de melhor eu havia visto e ouvido. Curiosamente, no dia anterior ao show de Carlos Malta havia achado o ingresso daquele maravilhoso espetáculo. E para expressar a minha enorme admiração por aqueles que há doze anos também me proporcionaram uma noite inesquecível, reproduzo abaixo o texto que escrevi para o jornal O Fluminense naquela ocasião.

Momento de gênio

Se tive na vida um instante de genialidade, um mínimo momento que seja, este foi quando decidi comprar um ingresso para assistir ao espetáculo do Trio Madeira Brasil anteontem no Teatro Municipal de Niterói. O curioso é que depois do espetáculo fui abordado por um rapaz de vinte e poucos anos para me falar de Deus. Como, se sem a necessidade de palavras tinha estado no céu sem sair da cadeira há poucos minutos? O Trio formado por Ronaldo do Bandolim, José Paulo Becker (violão de sete cordas) e Marcello Gonçalves (violão) é, como diz a rapaziada, show de bola. E espetáculo dado com as notas passando de pé em pé, ou melhor, de mão em mão. Assim como já fizeram Gérson, Tostão, Clodoaldo, Rivelino, Jairzinho, Carlos Alberto nos palcos gramados – ou para puxar a sardinha para o meu time, Leandro, Júnior, Adílio, Andrade, Tita, Lico.
Ali se jogou para o time e para a platéia, arte. O jogo não foi contra ninguém, todos ganharam. Essa equipe fantástica fez desfilar músicas (jogadas) de virtuoses de outros tempos como Jacob do Bandolim, Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Lamartine, Manuel de Falla, Astor Piazzolla. Como os craques citados nos fizeram lembrar tantas vezes de que existiram antes deles Nilton Santos, Didi, Domingos da Guia, Zizinho e tantos outros brasileiros e estrangeiros da mesma categoria. Mas não se esqueceram dos que ainda estão em ação como Egberto Gismonti, Chico Buarque, Edu Lobo. Para completar, depois de apresentarem quase todas as músicas de seu primeiro CD (destaques para “Santa Morena”, de Jacob; “Danza de la vida breve”, de Manuel de Falla; e “Loro”, de Egberto Gismonti) e algumas do que estar por vir, chamaram mais uma fera chamada Beto Cazes para o molho percursivo.
No entanto, o que até então era arrepio de emoção, misturou-se a risos, encantamento e até escondidas lágrimas. Foi quando entrou o Zico, o Pelé, ou mais adequadamente, o Garrincha Armandinho. Faltava o gênio e ele chegou para fazer o imprevisível e arrebatar de vez a platéia do Teatro Municipal. Com seu bandolim elétrico ou o cavaquinho, Armandinho dialogava com a percussão fazendo sons de cuíca, surdo, tamborins, tantãs e outros instrumentos que nunca foram inventados. Passeou pelas “Noites Cariocas” com Jacob do Bandolim, fez baixar a “Ave Maria” no terreiro, varreu o salão com as “Vassourinhas” e "Apanhei-te Cavaquinho” para recordar Ernesto Nazareth. Tudo com uma alegria contagiante de criança. Ou seja, como todo gênio,  distribuía o jogo, assumia a responsabilidade da partida, antevia as jogadas e decidia com maestria. Pode-se dizer que o gênio tem parte com Deus, e o Diabo, mas não faz pacto de vida ou morte, pois é eterno.
É impressionante como tantas lições foram aprendidas sem a necessidade de qualquer palavra, apenas com os sons mágicos da música fantástica de todos esses maravilhosos artistas. E música brasileira. Sim, nunca uma noite foi tão brasileira ao som de chorinhos, sambas e frevos, mas também de ragtime, polca, bolero, tango, música sacra. A grande lição da noite foi a que tantas vezes aprendemos e, infelizmente, andamos nos esquecendo de praticar: somos miscigenados e, principalmente, miscigenadores. Não há a mínima necessidade de importarmos ritmos para apenas reproduzi-los e chamarmos de música brasileira apenas porque se fala português (quando isso!). Na noite de terça passada, a universal língua musical nos transformou a todos que compareceram ao Teatro Municipal de Niterói. Eu, pelo menos, saí de lá uma pessoa muito melhor do que quando entrei.


Fotos: Carlos Malta (divulgação) e Armandinho (Ivan Eric).
Vídeos: "Upa, Neguinho" (Edu Lobo/Gianfrancesco Guarnieri) e "Cais" (Milton Nascimento/Ronaldo Bastos), interpretações de Carlos Malta, com Ricky Sebastian (bateria), Larry Sieberth (piano) e o Grupo Tríade: Dalmo Mota (violões e berimbau), Augusto Mattoso (baixo acústico) e Luis Sobral (bateria), e "Loro" (Egberto Gismonti), com o Trio Madeira Brasil.
Veja também:
Samba Líquido
A questão do fânqui e o velho Angenor
Antúlio Madureira, o mestre de obras-primas

terça-feira, 13 de março de 2012

O JORNALISMO EM QUESTÃO

Em 2000, uma aluna de jornalismo que tinha como professor um ex-companheiro meu de trabalho me ligou para marcar uma entrevista por indicação dele. O assunto, obviamente, seria a profissão que ela escolheu e para a qual eu já trabalhava há mais de dez anos. Lembro que marquei de encontrá-la no Centro Cultural da Justiça Federal, no Centro do Rio, onde eu assistiria à peça Insensatez, de Jean Cocteau, duas horas antes do início do espetáculo.
A menina, da qual jamais lembrarei o nome, gravou a entrevista, então há alguma possibilidade (embora considere remotíssima) de que ela possa ser confirmada. No fim do nosso papo, a estudante me perguntou como se poderia praticar o jornalismo independente e respondi que isso só seria possível se ela montasse um jornal - logicamente naquela época a internet não tinha a dimensão e a popularidade que ganhou nos últimos anos. E ainda assim, isso não seria garantia de nada, afirmei.
Prossegui: digamos que eu tivesse um jornal no meu bairro e um dia descobrisse que o dono do açougue (digamos) Boizão, principal patrocinador do meu pequeno e bravo veículo de comunicação, adulterara a balança do seu estabelecimento comercial para passar a perna nos fregueses e lucrar mais. Disse a ela: se eu publicasse matéria sobre isso - logicamente com a comprovação da fraude -, mesmo tendo como certa a perda da minha principal fonte de renda, agiria como jornalista. Porém, se optasse por deixar pra lá, seria qualquer coisa, menos jornalista.
Convidei-a a assistir à peça, mas ela recusou, dizendo que precisava ir para casa bater o trabalho que acabara de apurar. Então, me despedi da estudante dizendo que veria mais verdades na sala ao lado do que em todo noticiário do dia.
Veja também:
Adeus, Maracanã
A conversa continua
Entrevista: Nelson Pereira dos Santos

quinta-feira, 8 de março de 2012

ELES NÃO NOS ENTENDEM*

Caí na besteira de aproveitar um gancho numa conversa de bar, quando já me despedia, para dizer a um americano que estava à mesa que nós brasileiros éramos desvirtuados por natureza. Eu, naquele momento ainda sob os efeitos do álcool (não muito, é bom que se diga!) e da verdadeira aula de cultura popular que acabara de presenciar no Largo do Curvelo, quis resumir numa palavra tudo aquilo que nossas elites e os gringos têm muita dificuldade de entender (alguns conseguem, é verdade, mas a dificuldade existe): somos diferentes, porque através de uma mistura de raças que não se esgota temos a mais rica e variada cultura do mundo, quer eles queiram ou não. Nosso desvirtuamento está exatamente neste ponto: passamos de síntese da cultura mundial para nos transformar em algo original. E não estou dizendo novidade alguma, é só lembrarmos de Darcy Ribeiro e a sua tese de que somos desíndios, desafricanos e deseuropeus.

Pois bem, dizia eu que caí na besteira de ter dito o que disse para um estrangeiro. E por quê? Porque o americano, talvez impregnado por sua cultura nacional de colonização e de especialização - o especialista, como se sabe, é aquele que sabe quase tudo sobre quase nada - logo quis me rotular de algo que minha ignorância não me permitiu perceber de primeira. Ele me disse com seu sotaque canhestro que eu deveria ser um seguidor de Oliveira Viana, que só depois que deixei o bar - socorrido por uma amiga - fui saber se tratar de um consultor do primeiro Governo Getúlio Vargas que defendia que uma minoria deveria conduzir o povo (sabe-se lá para onde). Como não sabia de quem se tratava, mas desconfiado de que coisa boa não deveria ser, rechacei a idéia do gringo dizendo que nunca ouvira falar de Oliveira Viana e que tinha o "péssimo" hábito de ter idéias próprias.

Foi muito divertido saber depois, descendo as belas ladeiras de Santa Teresa, que se tratava de um americano e, que quando nos despedíamos, ele tentava convencer sua namorada brasileira de que é moreno. Ora, um branquelo de cabelos claros e olhos azuis querendo convencer uma "morenaça" que é da mesma cor dela, como se isso fosse a prova cabal de que entendia o espírito brasileiro, foi hilariante. Foi exatamente neste momento que entrei com a história do desvirtuamento, porque mesmo ele estudando tudo sobre a nossa história e cultura (e quem sabe se tornar um dia um brasilianista) e querendo se tornar moreno (num processo inverso do seu falecido compatriota Michael Jackson), terá sérias dificuldades para nos entender, simplesmente porque não é brasileiro (e para isso, ressalto aqui, não basta nascer nesta terra).

O americano em particular e seus compatriotas, em geral, me perdoem, mas é muito mais fácil conseguirem se identificar aqui com governantes e pseudo-religiosos que não compreendem a nossa cultura, com tudo de ótimo e péssimo que possuem. Isso vale tanto para os atuais, como para os do início do século XX, que proibiam o samba e a capoeira nas ruas do Rio, e para os frustrados que não se conformam de terem nascido no Brasil.

* Este texto, com modificações feitas agora, foi originalmente escrito entre 1997 e 99. O evento no Largo do Curvelo mencionado no texto foi uma manifestação de músicos, artistas e público em geral contra a proibição de música ao vivo em Santa Teresa pelo então prefeito que prefiro não citar o nome.



Vídeo: "Querelas do Brasil" (Aldir Blanc), com Elis Regina.
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