terça-feira, 13 de dezembro de 2011

OS MESTRES TAMBÉM PECAM

Luis Buñuel em ação
O título desta postagem, com esse tom melodramático, se explica pelo filme a que assisti na noite desta segunda-feira. Inegavelmente, Luis Buñuel é um dos gênios da história do cinema, e eu acompanho esta opinião, tanto que tenho em casa uma caixa com três DVDs de filmes do cineasta espanhol, sendo que um deles é o que considero o seu melhor e um dos maiores que já vi (e revi algumas vezes): O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador, 1962)

No entanto, pude constatar que nem sempre Buñuel (1900-1983) acertou. Aliás errou feio, mas não sem motivo, quando dirigiu Escravos do Rancor (Abismos de Pasión, de 1953). É certamente um dos piores filmes que vi na minha vida este que Buñuel realizou como adaptação do livro O Morro dos Ventos Uivantes (Wuthering Heighs, 1847), da escritora britânica Emily Brontë. Com um elenco de péssima qualidade, o cineasta espanhol, que já havia escrito seu nome na história do cinema com as obras surrealistas Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1929) e A Idade do Ouro (L’Âge D’Or, 1929), ambos com Salvador Dalí, conseguiu realizar uma novela mexicana. Um melodrama dramático para todos os admiradores de Buñuel.


No entanto, há uma explicação para o cineasta espanhol ter realizado um filme tão ruim. Depois de escapar das garras da ditadura de Franco, foi para os Estados Unidos, onde nunca conseguiu pôr em prática sequer um de seus projetos. Trabalhou no Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova York, mas teve de deixar o país, ao ser identificado por seu ex-amigo Dalí como simpatizante do comunismo. Ficou 15 anos sem filmar e partiu para o México, país que acolheu artistas e intelectuais espanhóis.

Cena de "Viridiana" (1960)

Porém, o início não foi fácil. Mesmo assim conseguiu êxito artístico com Os Esquecidos (Los Olvidados, 1950, outro filme da caixa que tenho em casa), mas, sem dinheiro, Buñuel começou a dirigir filmes por encomenda. Chegou a fazer uma versão de Robinson Crusoé no mesmo ano de Escravos do Rancor. E mostrou que apenas por dinheiro, mesmo que haja sucesso, até os mestres se enganam. Dalí, aliás, é um grande exemplo disso.

Superada essa fase, Buñuel consolidou a sua carreira com filmes emblemáticos, como Viridiana (1960, o terceiro filme da caixa de DVDs), que estranhamente conseguiu realizar na Espanha. O regime de Franco deixou uma brecha, e Buñuel penetrou para questionar a máxima da caridade cristã de que dando aos pobres se empresta a Deus. A cena dos mendigos à mesa parodiando A Última Ceia é antológica (foto acima).

Cena de "O anjo exterminador" (1962)

Voltou ao México onde filmou O Anjo Exterminador, em que torna a visitar o surrealismo. Inexplicavelmente, uma das marcas do diretor, a repetição de uma cena pouco depois de sua exibição, foi cortada no DVD deste filme como se fosse um erro de montagem. Lamentável.

Depois, na França, Buñuel emplacaria uma obra-prima atrás da outra, contando com roteiros de Jean-Claude Carrière e uma liberdade para criar que não encontrara desde os filmes que fizera com Dalí. Assim, vieram, entre outros, A Bela da Tarde (Belle de Jour, 1967), com Catherine Deneuve fazendo o papel de uma mulher frígida com o marido que se prostitui numa discreta casa todas as tardes; O Discreto Charme da Burguesia (Le Charme Discret de la Bourgeoise, 1972), e Esse Obscuro Objeto do Desejo (Cet Obscur Object du Désir, 1976), no qual utiliza duas atrizes (Ángela Molina, na foto acima, e Carole Bouquet, na foto abaixo) para o mesmo papel, Conchita, uma personagem traiçoeira que manipula um homem maduro (Fernando Rey, em ambas as fotos). 

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Eu só percebi que eram duas atrizes que faziam o mesmo papel na segunda vez que assisti. Uma interpretava a Conchita sedutora e a outra a Conchita cruel. Muita gente não conseguiu perceber, apesar da grande diferença entre Ángela e Carole. Coisa de gênio. 

Ele admitiu que realizou filmes com histórias, atores e em condições que não desejava, mas mesmo assim não renegou uma obra sequer sua. Não quis esconder seus erros. O cineasta espanhol, que se declarava ateu, pecou quando precisou trabalhar apenas por dinheiro e foi divino quando lhe deram liberdade para criar.

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sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

A GRANDIOSIDADE DE VICTOR HUGO

Sou um leitor e espectador de muita sorte. Volta e meia o que leio e ou assisto se entrecruza, permitindo que eu consiga ter uma noção ainda maior sobre aquilo que li ou assisti. Acrescenta, enriquece, alimenta. 

Desta vez, uma sutil coincidência me fez mensurar (se é que isso é possível) a grandiosidade do escritor francês Victor Hugo (1802-1885), que pessoalmente teve uma vida tão trágica quanto Nelson Rodrigues. Estava eu já nas últimas páginas do belíssimo Os Miseráveis (Les Misérables, 1862), que me foi gentilmente emprestado pela minha amiga de longa data Luciana Tecídio, quando fui rever o filme Camille Claudel (de 1988), com Isabelle Adjani no papel da atormentada e brilhante escultora, e Gerard Depardieu, no de Rodin (direção de Bruno Nuytten). 

Uma passagem no fim do filme cairia no meu esquecimento novamente se não estivesse envolvido com o livro. É a cena em que é anunciada a morte de Victor Hugo. A comoção do povo francês, desde artistas a pessoas comuns, retratada na obra de Nuytten confirma o que li sobre o escritor - um cidadão do mundo, como se intitulava - no resumo de sua vida impresso nas últimas páginas do segundo volume de Os Miseráveis. A cena é rápida, se passa nas ruas de Paris, com Rodin comovido se preparando para ir ao funeral, mas bem significativa.

Já havia lido antes O Último Dia de um Condenado à Morte e O Corcunda de Notre Dame, mas foi em Os Miseráveis que Victor Hugo me arrebatou de vez, especialmente com o personagem principal, Jean Valjean. Em breve partirei para Os Trabalhadores do Mar, que já tenho em casa desde os anos 90, mas antes já me vejo às voltas com outro ex-presidiário, Franz Biberkopf, de Berlin Alexanderplatz, livro de Alfred Döblin que Fassbinder filmou e que desde os anos 80 o cerco para assistir, o que não é fácil, já que são 15 horas de filme, divididas em oito episódios. 

Porém, Valjean já faz parte da galeria de grandes personagens com os quais me deparei. E lembro de Julien Sorrel, de O Vermelho e o Negro (1830), obra de outro grande escritor francês, Stendhal. Na verdade, em comparação, Sorrel estaria mais próximo de Marius do que de Valjean, mas o que destaco é o efeito que certos personagens nos provocam, como se fossem reais. Se em Guerra e Paz (1865), de Tolstoi, presente que ganhei do meu ex-companheiro de trabalho Marcus Veras, vi Napoleão se estrepar na Rússia, agora, com Os Miseráveis, o revi em Waterloo, novamente como um personagem importante no pano de fundo que conduz os fatos históricos assistidos e vivenciados por Pedro (ou Pierre, segundo a mais nova tradução, direto do russo) Bezukhov e Valjean e Marius.

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Conexões
A brutal delicadeza de Kieslowski


No entanto, as conexões são muitas e outras vieram. Na mesma semana assisti a Meia-Noite em Paris (a capital francesa novamente presente!), de Woody Allen, e posteriormente O Estranho (ou Curioso) Caso de Benjamin Button. Onde está a conexão, movida pelo acaso (ou seja lá o nome que se queira dar)? O primeiro personagem que Gil Pender (Owen Wilson) encontra na sua viagem pelo tempo no filme de Allen é o escritor Scott Fitzgerald. E é justamente baseado num conto desse escritor americano que David Fincher dirigiu a história de Benjamin Button - que nasce velho e morre bebê - interpretado por Brad Pitt.


O fio condutor dessas conexões artísticas não será rompido, pois sei que outras virão. Estou preparado, atento e curioso. Porém, agora quero apenas dizer uma coisa: obrigado pelos ótimos momentos que me proporcionou neste ano difícil, Monsieur Victor Hugo.

Ilustrações (na ordem, de cima para baixo): Victor Hugo, de Auguste Rodin; Jean Valjean retratado no Les Misérables original, e Victor Hugo e as Musas, de Auguste Rodin.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

SÓCRATES, O DOUTOR DA BOLA

Assim como Afonsinho e Tostão, Sócrates conseguiu conciliar o estudo da Medicina com belas jogadas nos campos de futebol profissional. E como os outros dois, foi acima da média tanto dentro como fora das quatro linhas. Por sorte, ele não teve a carreira nos gramados tão abreviada como as do ex-jogador de Botafogo, Olaria, Flamengo e Fluminense e, principalmente, a do ex-Cruzeiro, Vasco e Seleção Brasileira. Porém, da vida despediu-se bem antes, aos 57 anos, no último domingo.


Muitas e justíssimas homenagens já foram feitas ao Doutor e, eu que tive a sorte de vê-lo jogar ao vivo muitas vezes pela TV e em algumas ocasiões no Maracanã pelo Corinthians, pelas Seleções Paulista e Brasileira e também num Fla-Flu de 1986, quando iniciava sua breve passagem pelo Rubro-Negro, presto aqui a minha singela com um jogo pouco lembrado: França 1 x 3 Brasil, em 1981. Esta partida foi a segunda da brilhante excursão à Europa que ainda teve as vitórias sobre a Inglaterra, em Wembley, por 1 a 0, e depois sobre a Alemanha, por 2 a 1, de virada, em Stuttgart.

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Curiosamente, a partida contra a França não pude ver ao vivo, por causa do colégio ou do curso de inglês, mas o baile de bola que a Seleção Brasileira deu no Parc des Princes, em Paris, foi inesquecível para quem aprecia a arte no futebol. O time que Telê imaginava escalar na Copa da Espanha, no ano seguinte, tinha o genial Reinaldo no ataque, mas ele se contundiu, o treinador tentou Careca, que também se machucou, e acabou optando por Serginho Chulapa, em vez de Roberto Dinamite. Mas isso é outra história. 

No jogo em Paris, Sócrates, Zico e o artilheiro do Atlético-MG, autores dos três gols do Brasil, deram uma aula no excelente time francês, que em 82 foi junto com o Brasil os dois últimos representantes do futebol-arte no mundo. Fica aí, para quem souber apreciar, as belas jogadas do Doutor Sócrates, incluindo um gol de placa, e seus companheiros de então. É de arrepiar!

  

FICHA TÉCNICA
FRANÇA 1 x 3 BRASIL
15/5/1981 - Amistoso
Local: Parc des Princes (Paris-FRA)
Público: 47.749
Árbitro: Gianfranco Menegalli (ITA)
Expulsão: Six 45 do 2º tempo.
Gols: Zico 21 e Reinaldo 27 do 1º tempo; Sócrates 7 e Six 36 do 2º tempo.
França: Dropsy (Castaneda, intervalo), Janvion, Lopez, Tresor (Specht, 23 do 1º) e Bossis; Tigana, Moizan e Genghini; Rouyer (Lecornu, 33 do 2º), Anziani (Delamontagne, 14 do 2º) e Six. Técnico: Michel Hidalgo.
Brasil: Paulo Sérgio, Edevaldo, Oscar (Edinho, 33 do 2º), Luizinho e Júnior; Toninho Cerezo, Sócrates (Vítor, 33 do 2º) e Zico; Paulo Isidoro, Reinaldo (César, 18 do 2º) e Éder (Zé Sérgio, 28 do 2º). Técnico: Telê Santana.
Foto: Sócrates com a bola, Falcão ao fundo, na partida Brasil 3 x 1 Argentina, pela Copa da Espanha, em 1982 - J. B. Scalco.

Tudo o que foi publicado em dezembro de 2010.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

PENSO, LOGO SINTO 5

A existência dos planos de saúde é a mais importante assinatura do Estado no seu atestado de incompetência.

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Tudo o que foi publicado em novembro de 2010

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

PENSO, LOGO SINTO 4

O mal da medicina de nossos tempos é a doença: preocupa-se com as enfermidades e não com os pacientes. É bem mais lucrativo.
 
Vídeo: "Música urbana 2 (Renato Russo), com Cassia Eller.
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Penso, logo sinto 2
Penso, logo sinto

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A BRUTAL DELICADEZA DE KIESLOWSKI

O polonês Krzysztof Kieslowski soube como poucos fazer cinema com dureza – e até frieza, retratada em alguns de seus personagens – sem ser estúpido, e com suavidade sem ser piegas. Em uma entrevista em Cannes (França), pouco tempo antes de falecer, ele demonstrou sutilmente, da mesma forma que conduzia seus filmes, que poderia ter sido levado a filmar a violência e o romantismo descartáveis: “Sou católico, batizei minha filha inclusive. Na Polônia ninguém escapa disso.”

Ele, no entanto, subverteu o que parecia inexorável. Kieslowski optou pela poesia, de versos contundentes e também ternos, como em A fraternidade é vermelha (Trois couleurs: rouge – 1994), último filme da trilogia sobre as cores da bandeira francesa e do lema de sua Revolução, além de ter sido também o derradeiro do cineasta. 

O encontro de Valentine (a bela Irene Jacob) com o aposentado e recluso juiz (brilhantemente interpretado por Jean-Louis Trintignant), que escuta as conversas de seus vizinhos ao telefone por intermédio de um aparelho instalado em sua casa, produz dos mais belos diálogos da história do cinema, mesmo quando não há palavras. No fim, a reunião dos principais personagens do filme com os de A liberdade é azul (Trois couleurs: bleu - 1993) e A igualdade é branca (Trois couleurs: blanc) foi feita com uma solução genial, que nas mãos de outro diretor e outro montador (Jacques Witta), poderia ter caído para o banal.

A presença marcante da música e da filosofia não acadêmica são marcas registradas da obra “kieslowskiana”. Ele mesmo admitiu que leu alguns filósofos modernos, mas sempre procurou usar sua visão de vida no olhar da câmera sem didatismos ou pedantismo. 

O jogo dos duplos, de personagens que se assemelham fisicamente ou por sua história de vida, aparece tanto em A dupla vida de Veronique (La double vie de Véronique – 1990) quanto em A fraternidade é vermelha. Outro detalhe interessante é ele tratar da gravidez e do instinto materno por intermédio de animais: uma rata em A liberdade é azul e a cadela que serve de elo entre Valentine e o juiz no último filme da trilogia.


Referências e influências de grandes mestres ficam nítidos para quem assiste aos filmes deste grande polonês com algum conhecimento e muita atenção. Porém, ele buscou um passo à frente em suas influências. De Luis Buñuel, por exemplo, em vez de repetir cenas, procurou criar no espectador a sensação de “deja-vu” dentro do próprio filme e fora também, como a velhinha que tenta pôr a garrafa na lixeira (veja no vídeo abaixo, ela em A liberdade é azul)

Encontra-se algo de Andrei Tarkovsky numa cena de A fraternidade é vermelha em que o vento entra por uma janela e derruba um copo de café numa mesa de sinuca, em seus momentos finais. De Alfred Hitchcock, o “voyeur” de Janela indiscreta (Rear window – 1954) é uma clara inspiração para o personagem Tomas (Olaf Lubaszenko) de Não amarás (Krotki Film o Milosci - 1988), o primeiro filme que vi de Kieslowski, e que faz parte do decálogo baseado nos Dez Mandamentos produzido originalmente para a televisão e posteriormente estendido para a telona. Além deste, outro que foi para as salas de cinema é Não matarás (Krótki Film o Zabijaniu – 1988), um libelo contra a pena de morte.

Fica ali mais uma vez evidente a influência cristã em sua obra, seja para confrontá-la, questioná-la ou afirmá-la. Mas não só isso, pois um dos temas mais presentes em seus filmes é o debate sobre o destino (pré-traçado ou não) e a justiça divina e dos homens. Ele ainda escreveu um roteiro para uma outra trilogia, Paraíso, Purgatório e Inferno, baseado na épica poesia A divina comédia, de Dante Alighieri, e o primeiro chegou a ser filmado por Tom Twyker, em 2002 (ainda não vi). 

Kieslowski disse que estava cansado dos sets e que não filmaria mais, logo após seu último trabalho como diretor, embora tivesse deixado a incerteza no ar. Infelizmente, ele faleceu em 13 de março de 1996, aos 54 anos, na mesma Varsóvia em que nascera em 27 de junho de 1941, sem ter como descumprir sua promessa. Ficaram a sua bela obra e a referência para muitos cineastas do mundo inteiro.


Fotos: Kieslowski; Irene Jacob e Jean-Louis Trintignant, em cena de A fraternidade é vermelha, e cartaz da trilogia.
Vídeo: cenas A liberdade é azul, análise de Andrea França (coordenadora do curso de Cinema, da PUC-RJ) e entrevistas com Kieslowki.

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segunda-feira, 19 de setembro de 2011

NA DANÇA DE 'DINAM-NIETZSCHE' *

Filólogo, poeta, pianista e, mais que tudo, filósofo, Friedrich Wilhelm Nietzsche foi um iconoclasta que passou a vida inteira questionando o homem e a sua vida na sociedade, que de seu tempo para cá, na essência, pouco ou nada mudou. Há algumas semanas o jornal O Globo publicou uma matéria afirmando que o estudo de Nietzsche virou moda no Rio. Depois que Che, Gandhi, Jesus Cristo e outros revolucionários foram transformados pela sociedade capitalista em ícones para ávido consumo, não é de se estranhar que o filósofo alemão também entre na dança.

Mas, quem não ficar apenas vestido com uma estampa do bigodudo na camisa saberá que a dança do autor de Assim falou Zaratustra não tem coreografia, é livre e libertadora. E saberá, a partir da leitura do que escreveu Nietzsche, que da verdade mesmo, ninguém a suporta. Para ele a vida precisava ser vivida com a linha esticada ao máximo e desancava quem vendia terrenos no céu ou transmundos, como dizia. A noção de que existe vida após a morte era inconcebível para Nietzsche. Como se vê, o debate é mais do que atual.

"Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar"

Esse alemão, que admirou e depois se afastou de Richard Wagner, elaborou o conceito do eterno retorno e do super-homem, mas não o herói de Kriptônia. Para ele, o homem deve superar-se, usando ao máximo sua sensibilidade, mas sem perder a sua racionalidade. A vontade de poder a que se refere Nietzsche é exatamente esta: a do poder sobre si mesmo. Portanto, mais um ótimo tema para a discussão dos vários vícios a que se entregou a sociedade contemporânea.

A fraqueza do homem, segundo Nietzsche, o transformou num ressentido e a compaixão, a caridade, a anulação do indivíduo pelo coletivo nasce dessa reação a que o rebanho - as massas - se entrega com devoção. O filósofo alemão pregou a transvaloração dos valores, pois entendia que os valores tradicionais, especialmente os cristãos, nada mais eram do que uma moralidade escrava. “Deus está morto”, decretou na voz de Zaratustra.

Nietzsche era autor de frases verdadeiramente bombásticas, algumas proféticas. Alguém duvida da atualidade do que disse, no século em que viveu, o XVIII: “Mais um século de jornais e as palavras se corromperão”? E, em tempos de guerras sob justificativas absurdas, há como negar que ele estivesse certo quando afirmou que “As convicções são mais inimigas da verdade do que as mentiras”? E quem, senão os covardes, ousaria descrer no conselho “Floresça onde você estiver plantado”?

Em suma, Nietzsche buscou em toda a sua vida o que ensinou: a busca pelo conhecimento, mas não para segui-lo como doutrina e sim para a criação, a transformação, a reinvenção do mundo. Um trabalho, sem dúvida, para um super-homem ou, numa melhor tradução, para quem busca o além do homem.

"Agora sou leve, agora eu vôo... agora um deus dança em mim"

Para quem quer mesmo conhecer esse polêmico filósofo alemão, que teve a obra deturpada pela irmã ao associá-la ao nazismo, do qual ela era simpatizante, antes mesmo de ler seus livros uma boa pedida é a biografia intelectual traçada por Rüdiger Safranski em “Nietzsche, a biografia de uma tragédia”, lançado no Brasil pela Geração Editorial.

Lá está, por exemplo: “O animal consciente homem, com horizonte de passado e futuro, raramente se satisfaz de todo com o seu presente, e por isso sente algo que certamente nenhum animal conhece, isto é, o tédio. Fugindo do tédio, essa singular criatura procura uma excitação que, se não for encontrada, tem de ser inventada. O homem se torna um animal que brinca. O jogo é uma invenção que entretém os afetos. O jogo é a arte de auto-excitação dos afetos, a música, por exemplo. A fórmula antropológico-fisiológica para o segredo da arte é pois: a fuga do tédio é a mãe das artes.

Mini-biografia - Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, em Rocken, na Saxônia, e perdeu seu pai, que era luterano, aos cinco anos de idade. Foi criado pela mãe com sua avó, duas tias e uma irmã. Estudou filologia em Bonn e Leipzig e com 24 anos já era professor. No entanto, a prejudicada visão e as fortes dores de cabeça que o perseguiram até o fim da vida, em 25 de agosto de 1900, em Weimar, causaram a sua aposentadoria precoce em 1879. Dez anos depois ele sofreu um grave problema mental do qual nunca se recuperou.

Além da influência da cultura grega, da qual era mestre, Nietzsche foi influenciado por outro filósofo alemão, Schopenhauer, pela teoria da evolução e pelo seu amigo compositor Richard Wagner. Mas a todos questionou, afastou-se e criou seus próprios conceitos.

Entre seus principais livros estão O Nascimento da Tragédia (1872), Assim falou Zaratustra, um livro para todos e para ninguém (1883-85), Além do Bem e do Mal (1886), Sobre a Genealogia da Moral (1887), O Anticristo (1888), Ecce Homo (1889) e A Vontade de Poder (1901).

“Conheço minha sina. Algum dia meu nome estará ligado a qualquer coisa enorme – a uma crise como nunca houve na terra, ao mais profundo conflito de consciência, a uma decisão invocada contra tudo aquilo que, até aqui, se acreditou, se estimulou, se santificou. Eu não sou um ser humano, sou dinamite...” “...Tenho um medo horrível de que um dia me proclamem santo.” (Fridriech Nietzsche, em Ecce Homo)

* Este texto foi escrito em 2003

Veja também:
O Grande Ditador, uma Obra-Prima de 70 Anos

terça-feira, 30 de agosto de 2011

UMA VIAGEM NO TEMPO E NO ESPAÇO COM LOREENA MCKENITT


Muito além de gostar, há alguns tipos de música que me fazem viajar no tempo e no espaço. Que me carregam para épocas que – ao menos na minha consciência – não vivi e a locais onde nunca estive – pelo menos nestes 45 anos que conto desde 20 de julho de 1966. As sonoridades das músicas celta e moura sempre conseguiram me transportar para além de mim, por isso sempre me comoveram muito. Lógico que falo da música como um elemento de arte que me é mais acessível, e com a qual sempre me identifiquei, embora nunca tenha conseguido aprender a tocar um instrumento sequer, o máximo é vez por outra cantar apenas razoavelmente.

Nas minhas viagens musicais, nas pesquisas que faço via youtube, achei vídeos de Loreena McKenitt de um DVD que me chapou de cara: Nights from the Alhambra. Divulguei algumas músicas pelo facebook, onde às vezes faço as vezes de radialista/DJ mostrando o que curto e descobertas que faço. Pois bem, já conhecia Loreena por intermédio de amigos e, posteriormente, pela trilha do filme As Brumas de Avalon. Mas vendo os vídeos desse DVD repeti tantas vezes que queria comprar um dia, que o ganhei da minha amada namorada, como presente de aniversário.

E assistindo ao show inteiro no estonteante palácio de Carlos V em Granada, Espanha, retomei a lembrança de quanto estou ligado à Andaluzia. É um espetáculo único, extraordinário. A voz de Loreena, a harpa, o acordeão e o piano que ela toca, e os músicos que reuniu, cada um com um instrumento mais belo que outro, fizeram-me transcender, ir aos locais mais bonitos de mim mesmo. Nunca saí do Brasil, tenho certas desconfianças quanto à reencarnação (minha tese pseudocientífica é outra), mas tenho absoluta certeza de que algo em mim já esteve nas terras pagãs da Irlanda, Escócia e País de Gales e, obviamente, pelos meus sobrenomes (Lamas, espanhol, e Neiva, português), sofri forte influência da presença moura na Europa.

Loreena me leva a lugares onde nunca estive, mas ao qual pertenço de alguma forma. Claro que já ouvi muita coisa do folk britânico – fortemente influenciado pelos celtas – e da música moura que me comoveram e me fizeram viajar, mas em músicas separadas. Jethro Tull, Led Zeppelin, The Coors, Madredeus – com a encantadora Teresa Salgueiro - cantaram e tocaram músicas que vinham dos bosques e dos desertos. E ressalto aqui também a força que a música moura tem na música nordestina do Brasil. Mas sempre contendo um elemento ou outro, nunca os dois juntos.

No entanto, a canadense Loreena teve a felicidade e capacidade de reunir os dois elementos nas mesmas músicas – e ainda acrescentar o canto gregoriano em The Mystic’s Dream. É extremamente comovente quando se interage desta forma com um artista, e foi com muita emoção que percebi que já viajei por muitas partes do mundo, em tempos muito distantes, nem que tenha sido apenas pelo meu “sub-inconsciente”. É de arrepiar.


Vídeo: The Mystic's Dream (Loreena McKenitt)
Veja também: o que foi publicado em setembro de 2010
Os Sopros Mágicos de Carlos Malta

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

A CONVERSA CONTINUA...

Outro dia, tive o prazer de me encontrar por acaso com meu amigo Ecio, um cinéfilo apaixonado por trilhas sonoras para filmes, e na conversa no ônibus, em dado momento, ele disse que concordava com a tese de que tudo o que havia de ser criado (ele se referia a cinema e a música, mas creio que estenderia a outras formas de arte) já foi feito e que nos últimos tempos só há repetições, adaptações, recriações. Na hora assenti, e citamos Shakespeare, Beethoven, Victor Hugo e Chacrinha, o autor da célebre frase “nada se cria, tudo se copia”.

Mas uma conversa nunca termina quando me despeço, ela segue em minha cabeça. Rememoro falas, idéias e pensamentos, angustio-me com algo que poderia ter dito e deixei passar, histórias que comecei ou o interlocutor iniciou e ficou parada no ar, e crio diálogos que não aconteceram, mas que bem poderiam. E o papo só acaba mesmo quando me esqueço dele. Como se vê, ele ainda não acabou.

É que, mesmo já tendo questionado várias vezes o que seria espontâneo hoje nas manifestações artísticas – e esse hoje abrange um período que vai além da metade que conto de vida – não posso, simplesmente não posso e não quero crer que nada mais possa ser efetivamente novo, surpreendente, espontâneo. Porque o dia que eu acreditar nisso, eu paro. E não quero, simplesmente não posso parar. Continuo a busca e enquanto isso vou me salvando de mim mesmo.


Vídeo: Sinfonia número 3 (A Heróica) - Movimentos 3 e 4 - de Beethoven (regida pelo maestro Gustavo Dudamel), com a Orquestra Sinfônica Simon Bolívar.
Veja também:
Para Milton e Nossos Amigos
Antulio Madureira, Mestre de Obras-Primas
Há 40 Anos, o Adeus de Jimi Hendrix

terça-feira, 16 de agosto de 2011

PENSO, LOGO SINTO

Cada um preenche seus vazios com a força de sua natureza: com brisas amainadoras, constantes ventos de renovação, vendavais, ar rarefeito, poluição ou com o vácuo de suas parcas idéias.

Vídeo: "Cortina (Curtain)", com e de Naná Vasconcelos.

Veja também:
Versos do Avesso

domingo, 24 de julho de 2011

NA VOLTA DO BONSUCESSO À PRIMEIRA DIVISÃO DO RIO, AS CONSEQÜENTES BOAS LEMBRANÇAS DE MEU AVÔ THOMÉ

No mesmo dia em que Amy Winehouse concretizou a crônica de uma morte tantas vezes anunciada, recebi a notícia de que o Bonsucesso havia conseguido voltar à Primeira Divisão do futebol do Rio, algo que me deixou muito satisfeito e que me trouxe à memória ótimas lembranças. Um assunto, obviamente, nada tem a ver com o outro, mas é que pensava em escrever algo sobre a talentosa e conturbada cantora e compositora, quando veio a informação de bem menor repercussão, mas que me atraiu mais por fortes motivações pessoais. Além do mais, a mídia esgotará ad nauseam a morte de Amy.

Além de ter o nome do bairro onde nasci, o Bonsucesso Futebol Clube teve como center half (o cabeça de área ou volante dos tempos passados) um garoto chamado Lamas nos anos de 1935, 36, 37 e iniciozinho de 38, ninguém menos que meu avô materno, Thomé de Souza Lamas (1919-1985), de quem tenho as melhores recordações e de quem herdei a paixão pelo futebol e pela escrita. 

Que ele havia jogado no Bonsucesso eu já sabia, porque me contara inclusive que teve de parar no ano em que completaria 18 anos para servir o Exército. Os anos em que ele jogou só vim a saber há poucos anos, graças ao amigo pesquisador Eduardo Santos.

Apesar de ter jogado no Bonsuça, meu avô era torcedor do Olaria, que também leva o nome do bairro em que ele morava e eu também morei, até os 4, 5 anos de idade. E foi me levando em algumas manhãs de domingo ao estádio da Rua Bariri, após um café com pão e ovo de gema mole (ou ovo quente), preparado por ele para mim, que comecei a me aproximar mais do mundo do futebol. Lá vi vários jogos do time alvianil, inclusive contra o próprio Bonsucesso. 

O craque do Olaria Atlético Clube naquela época (início dos anos 70) era o camisa 8 Lulinha, que depois foi vice-campeão brasileiro pelo Bangu no mesmo ano em que "seu" Thomé faleceu e posteriormente ainda teve uma passagem pelo Botafogo. Certamente fortaleceu-se muito ali, naquelas alegres manhãs, a minha paixão pelo futebol.

Olaria x Bonsucesso, em 2008, na Rua Bariri.
Foto: André Queiroz, 
do blog Fanáticos pelo Cesso

Se de meu avô Thomé recebi influências que me fizeram sonhar ser também um jogador de futebol (cheguei a fazer testes para o América, Flamengo e Vasco), também me ajudaram muito a me tornar escritor e jornalista, algo que só muitos e muitos anos mais tarde pude perceber. Ele que me ensinou a manusear corretamente uma máquina de escrever e me explicava o significado de palavras que eu lia e não entendia na parte de esportes do jornal, a única que me interessava naquela época. 

Vendendo material gráfico para jornais, meu avô conheceu muitas e muitas cidades deste país, de onde me mandava telegramas e cartas, ora me parabenizando pelo aniversário, ora por ter passado de ano no colégio ou apenas para matar a saudade. Nestas viagens, ele começou a escrever nas horas vagas alguns textos e um livro, cujo o manuscrito está comigo, cedido pelo meu tio e padrinho, Roberto, falecido há um ano. 

Pode ser que publique um trecho aqui qualquer dia em mais uma homenagem a este homem de importância imensurável na minha vida e que me voltou com força à memória neste sábado, 23 de julho, graças ao retorno do Bonsuça à Primeira Divisão do Rio após 18 anos de ausência.

Termino parabenizando o clube alvirrubro (o Barcelona da Leopoldina) e também o Friburguense, que também retorna, no mesmo ano em que a sua cidade, Nova Friburgo, foi duramente castigada pelas chuvas de verão.

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quarta-feira, 6 de julho de 2011

RIO DE JANEIRO, UM DOENTE EM ESTADO GRAVE

O Rio de Janeiro ainda possui traços de um belo corpo, que no entanto está exaurido, gravemente enfermo. Um corpo tão usado e abusado, torturado, estuprado, mutilado tantas e tantas vezes e por tanto e tanto tempo, por mais resistente que seja, não pode suportar incólume eternamente. Já se podem ver enormes feridas em carne viva e fraturas expostas, que as várias cirurgias plásticas a que foi submetido não conseguem esconder. Muitos de seus órgãos internos estão podres - exalam no mau hálito diário! - e roubam dos que ainda não foram atingidos o pouco de vitalidade que possuem para tentar, como se fosse possível, uma sobrevivência espúria.

Vários sintomas vêm se manifestando ao longo dos anos, mas poucos prestam atenção. E a alma e o espírito cariocas, sempre tão afeitos a fantasias, ilusões, tentam compensar, mas só agravam a situação. Um curativo aqui, um remendinho ali, e de paliativo em paliativo o belo corpo foi adoecendo, sem que se atacassem as causas, buscando sempre atenuar os efeitos. Ele agora está empanzinado, cheio de gases, que seus orifícios expulsam cada vez mais violentamente.

Que este corpo já fedia há tempos, basta ter os sentidos em dia para se perceber, e não só pelo olfato. Agora, a violência das flatulências e dos arrotos nas suas vias, ainda que esparsos, certamente vão se intensificar se continuarem com os paliativos e a exauri-lo, usá-lo, abusá-lo, torturá-lo, estuprá-lo, mutilá-lo.

Se o doente não for muito bem cuidado, com urgência, se é que ainda há chance de recuperação, aí virá uma sofrida e lenta morte, com hemorragias internas e externas, intensos vômitos e seguidas diarréias.


Vídeo: "O Pulso", Titãs.
Foto: achei-a na internet e não havia crédito, gostaria de dá-lo.
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A grandiosidade de Victor Hugo

terça-feira, 7 de junho de 2011

quinta-feira, 19 de maio de 2011

BELEZA E CAOS: ARTE EM TODA PARTE

Diz-se dos artistas de um modo geral e dos poetas especificamente que eles têm uma proximidade muito grande com assuntos que dizem respeito ao divino, que enxergam o invisível, o abstrato, a alma das matérias. Disse o americano Ezra Pound, com toda autoridade que lhe é conferida pela sua obra, que o poeta é a antena da raça. Muitas poesias e obras literárias anteciparam acontecimentos, ou revelaram algo que ninguém – ou quase ninguém - podia ou conseguia enxergar.

Veja também:
Entrevista: Nelson Pereira dos Santos
Anna Karenina: cinema, teatro, música, dança, literatura


A beleza e também o horrendo – por que não? – estão à nossa volta o tempo inteiro. Talvez seja melhor dizer a ordem natural e o caos, que tanto podem produzir o belo como o horror. Depende de como se veja. Estão em toda parte, concreta e abstratamente, talvez em maior quantidade e intensidade no mundo em que olhos nus não alcançam.
A Física já se aproximou muito da arte e da espiritualidade como já nos mostrou Fritjof Capra. Não existe divisão, departamentos, seções, classificações na natureza. Tudo é um todo. Quem divide, departamentaliza, secciona e classifica é o homem, que facilita seu entendimento, mas se esquece que uma parte não vive sem a outra, que uma interfere na outra, mesmo sem conexões plausíveis, proximidades. É como aquilo que um dia li em algum lugar (já não me lembro quem disse ou escreveu): “uma batida de asas de uma borboleta na América pode ser o princípio de um vendaval na Ásia”.





A vida ainda traz muitos mistérios que o homem nem ousa chegar perto, mesmo os cientistas mais aclamados ou santos e sacerdotes mais próximos do que chamam Deus. A vida está em constante movimento, produzindo beleza e caos, com a contribuição ativa do ser humano, tanto para um – cada vez menos – como para o outro – cada vez mais. Uma ótima ilustração é o pensamento do escultor Auguste Rodin: “Tudo é movimento, até um corpo morto, em seu processo de decomposição, produz movimento”.
Mas se a vida é eterna, infinita, o que dizer da morte? Outro dia li uma frase de Walt Withman, o poeta americano que revolucionou a língua inglesa, especialmente em seu país. Do meu modo de entendê-las, Withman retrata muito bem o que significam: “A vida é o pouco que nos sobra da morte”.

E respaldado pelas palavras de dois gigantes da poesia e um das artes plásticas, além de um físico fora do comum, posso terminar este texto que muito me honrou ter escrito para a Coluna do LAM dizendo duas coisas que acredito muito no meu ofício de escritor e poeta. Uma é que o verdadeiro artista não expressa apenas aquilo que o público quer, mas aquilo que é necessário. Fazer só o que o público deseja é ser o bobo da corte. E para fechar: poesia sem filosofia é mero jogo de palavras.

* Este texto foi originalmente publicado no antigo site do jornalita Luiz Antonio Mello, Coluna do LAM. Atualmente, Coluna do LAM é um blog

Ilustrações (por ordem, de cima para baixo): Ezra Pound; capa do livro Ponto de Mutação, de Fritjof Capra; Fritjof Capra; retrato de Auguste Rodin feito por seu xará Renoir, e Walt Whitman.

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quarta-feira, 27 de abril de 2011

REENCONTRO COM LOBÃO *

Já começava a querer dar por encerrada a leitura de mais um capítulo do livro "Lobão, 50 anos a Mil" na madrugada deste 27 de abril de 2011 quando me deparo com algo surpreendente que me fez corrigir o rumo que traçava nesta noite chuvosa: em vez de dormir, afinal já estava na cama com sono, vim para o computador. Conta Lobão, creio que em 1997, quando se recuperava bem de mais uma tentativa de suicídio e já começava a compor as músicas do histórico e excelente CD "A Vida é Doce", que foi assistir com sua mulher, Regina, ao filme "A Eternidade e Um Dia", do cineasta grego Theo Angelopoulos, no Cine Estação Botafogo, e que foi por intermédio deste filme que conseguiu fechar aquela que é uma das que mais gosto dele, a que dá título ao álbum numerado e vendido em banca, justamente com a frase que faltava: "A Vida é Doce".
Caramba, eu estava na mesma sala, na mesma noite, assistindo ao filme e não sabia que havia sido tão importante para ele como foi para mim. Acho que fui sozinho ao cinema, mas nunca esqueci desse episódio, por alguns bons motivos. Primeiro, o fato de ter me surpreendido na fila com um artista conhecido e era um Lobão bem mais magro do que estava habituado a ver na TV e nos jornais. Até fiquei um pouco na dúvida se era ele mesmo, mas já dentro da pequena sala (ele entrou primeiro) confirmei que era o próprio. E principalmente porque aquele ótimo filme (que aliás preciso rever) me inspirou a escrever a poesia "Minha Noite". Fiz inclusive questão de destacar que ela fôra inspirada no filme do cineasta grego. Quatorze anos se passaram para que houvesse esse reencontro, embora ele mal saiba quem sou e muito menos que houvera um encontro.

MINHA NOITE

Inspirada pelo filme “A Eternidade e Um Dia”, de Theo Angelopoulos

Nunca precisei tanto de um abraço!
E na solidão da minha noite
o que eu mais quis
foi o que nunca tive:
o seu!
Cheguei a pensar em alugar um corpo
pra fingir ser o seu...
Sim, mil vezes sim:
o amanhã é a eternidade
e um dia;
E sei que posso morrer
a qualquer instante,
mas também que posso
viver cem anos
num só dia.

* Este texto também está publicado no site Coluna do LAM
Ilustração: Fábio Oliveira (http://desenhafabio.wordpress.com/)
Vídeo: cena do filme "A Eternidade e Um Dia", de Theo Angelopoulos. Esta é a que Lobão descreve no livro como sendo a que o fez achar o verso que faltava para fechar a música "A Vida é Doce", que também dá título ao CD lançado em 1999.
Veja também:
A brutal delicadeza de Kieslowski
Esquizofrenia
Os Sopros Mágicos de Carlos Malta

sexta-feira, 15 de abril de 2011

PARA MILTON E NOSSOS AMIGOS

Talvez Elis ou outro alguém muito inspirado disse certa vez que se Deus tem uma voz ela é a do Milton Nascimento. Sou lá muito sabedor das coisas de Deus não, embora com ele tenha esbarrado por vezes, ou imaginado isso, porém não é só a potência e beleza de voz que sai da boca desse carioca de Três Pontas (MG), as palavras, as frases, a poesia cantada - até quando não há palavras.

Tá certo, tá certo, Milton não fez, nem faz, tudo sozinho, mas o cara sempre soube escolher muito bem seus amigos, e ninguém cantou melhor a amizade do que ele, ninguém. Que bom amigo é coisa pra se guardar...

Eu, que nasci no Dia Internacional do Amigo, que sempre valorizei e exaltei a amizade, e que além de tudo amo as Minas Geraes, não poderia deixar de ser fãzaço desse gênio da música chamado Milton Nascimento. Ele é um grande inspirador. Salve Milton! Vida eterna, meu amigo. Voz e poesia eternas.


Vídeo: Caxangá (Milton Nascimento), com Elis Regina e Milton Nascimento.

Veja também:

Uma Viagem no Tempo e no Espaço com Loreena McKenitt
Músicas que nos fazem viajar #5: Cais

terça-feira, 29 de março de 2011

DAS PELADAS DE RUA ÀS ARENAS

"Futebol", de Orlando Teruz

Hoje divaguei um pouco em pensamentos desconexos sobre futebol. Na verdade, tudo começou quando, encadeado a outras lembranças que agora não me recordo mais, percebi que as peladas de rua morreram no bairro da Zona Norte carioca onde cheguei em 1971 e em muitos, muitos outros do Rio de Janeiro. Isso para não dizer em todos, pelo menos em todos por que passei nos últimos 10 anos ou mais  (me diga um que ainda tenha para eu ir). Lembrava das muitas que joguei em ruas bem e mal asfaltadas, de paralelepípedos, de terra, esburacadas, um pouco íngremes, até em ladeiras (bom era jogar no time de cima). Voltou à minha mente também o dia em que, no afã de salvar um gol, fui atropelado por uma Brasília – ou a atropelei, já nem sei.

A violência urbana certamente afastou a criançada das ruas para jogar bola e a atraiu para fazer malabarismos nos sinais de trânsito, mendigar e cheirar cola. Lembro muito bem da voz imponente de João Saldanha no radinho de pilha criticando, ainda na década de 70, a especulação imobiliária que andava acabando com os campinhos de pelada. E os playgrounds dos prédios, que brotaram como mato nesta cidade, com o tempo deixaram de ser espaço para a criançada se divertir para virar local de festas de adultos, cada vez mais reservados e caros.

Logicamente estou aqui falando da classe média, média baixa, porque no andar debaixo da pirâmide social - fora as antenas parabólicas e os "gatonets" – talvez tenha mudado um pouco menos, embora o espaço tenha ficado cada vez mais apertado nas favelas. A pelada sempre foi um fator de integração entre os garotos das mais variadas idades e classes sociais. Ali, no campinho improvisado no meio da rua, com balizas demarcadas com chinelos, latas, pedras ou até mesmo com estacas de madeira presas das mais diversas maneiras, todos se encontravam, dividiam-se em times para correr atrás da bola de borracha, plástico, couro ou meia. A distinção só existia para os que a controlavam melhor. Eram os mais respeitados e logo escolhidos, quando não eram os próprios a tirar o par ou ímpar ou "adedanha" e montar seus times. E entre os melhores poderia estar o neguinho do morro, o branco azedo da maior e mais bela casa da rua, o moreno da casa pobre da esquina, o cara de índio do prédio mais velho, ou o mestiço do prédio mais alto e luxuoso. O gordinho, o magrelo, o baixinho, o grandão, tanto faz. Neste aspecto as meninas de outrora levavam uma grande desvantagem.

Hoje, essa integração que as ruas promoviam estão extintas. As crianças estão separadas por grades, muros, entre escolas particulares e públicas, as ruas cada vez mais cheias de carros sempre velozes e furiosos e o futebol nosso de cada dia cada vez mais esquematizado taticamente e empobrecido tecnicamente. Se uma coisa é conseqüência da outra não posso precisar, mas posso intuir ou desconfiar. É o que sinto. Há muitos outros aspectos, sem dúvida. O modo de vida das pessoas no Rio – só para não ter a pretensão de dizer que é no país inteiro - mudou muito. E se sinto cada vez menos prazer em assistir a um jogo de futebol (as duas últimas Copas do Mundo foram pavorosas, numa decadência que vem da pior que assisti, a de 1990) é porque fui muito mal acostumado – ou muito bem, dependendo do ângulo que se veja. E não só pelos grandes jogadores que via no Maracanã e na televisão na época de torcedor, mas pelos que enfrentava ou tinha como companheiros nas peladas de rua. Joguei com muita gente que teria facilmente chegado à seleção brasileira se tivesse se profissionalizado.

Zico e Maradona na Copa de 1982. Foto: J.B. Scalco (Placar)

Esse apartheid brando do Rio de Janeiro que vislumbrei desmoronando a cidade no apito final das partidas de futebol disputadas em campos improvisados – e não do Playstation – me levaram em viagem para a Europa, onde o racismo recrudesce de maneira clara e tem nos estádios ou arenas um de seus palcos principais. Se no dia-a-dia, desconfio, essa discriminação é mais disfarçada – ou menos explícita –, foi nos campos de futebol profissional que ganharam força, porque a massa esconde o indivíduo. E, como todos sabem, o covarde só é forte quando se traveste de multidão. Vejo com tristeza, certa amargura até, a minha paixão infanto-juvenil, o futebol, ser usado por fascistas para manifestarem suas frustrações, seu ódio à vida, às diferenças. Esse racismo contra tantos africanos e brasileiros que atuam em clubes da Europa - e agora Neymar na vitória do Brasil sobre a Escócia - está revestido do fascismo que sempre ressurge em períodos de crise econômica. Certamente esses estúpidos que levam bananas aos estádios, não para se alimentar, mas para ofender, estão incomodados com os negros – ou estrangeiros de todas as cores e credos – que, segundo eles, estão ocupando um espaço que lhes pertence.

Aqui no Brasil, os fascistas do futebol se integram a torcidas organizadas para atacar quem não torce para o mesmo time e os homossexuais. São os pitboys. Nunca apreciaram uma boa partida de futebol, jamais jogaram uma pelada na rua ou em qualquer lugar. Para eles, mais até do que o time, é a torcida – ou quadrilha – organizada que precisa ser defendida, atacando quem pensa diferente. Para eles, melhor que o grande clássico é o encontro com os rivais - inimigos - para se digladiarem dentro ou fora dos estádios.

Diante de tudo isso me vem uma pergunta à cabeça: chegará o dia em que será preciso tirar a bola, os jogadores e o árbitro de campo para que esses fascistas adentrem o gramado e transformem em campos de batalha medievais as luxuosas arenas do mundo?

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sobre minhas
 sugestões de leitura pra você.
Quem leu, recomenda!


Veja também:
Ademir da Guia, o Divino
Setenta Anos do Canhotinha de Ouro
Maradona Cinqüentão
Garrincha, 77
Pelé, Só Ele
Reinaldo, o Rei do Galo Mineiro
Corinthians 4 x 3 Palmeiras (1971)
Beckenbauer, a Elegância do Kaiser
Fluminense 1 x 0 Bayern de Munique (1975)
Holanda 2 x 0 Uruguai (1974)
Cruzeiro 5 x 4 Internacional (1976)

segunda-feira, 28 de março de 2011

FRAGMENTO DE O NEGRO CREPÚSCULO NA COLUNA DO LAM

O jornalista, radialista, produtor musical e escritor Luiz Antonio Mello, um dos fundadores da Rádio Fluminense FM (juntamente com Samuel Wainer Filho), me convidou na semana passada para que eu lhe enviasse um texto de minha autoria para ser publicado em seu site, Coluna do LAM, que eu leio diariamente e, obviamente, recomendo com todas as letras. Fiquei muito feliz e honrado e (es)colhi um trecho do livro que pretendo lançar ainda este ano - com ou sem editora - e lá está desde este último dia 27 de março Fragmento de O Negro Crepúsculo com uma ilustração que me fez lembrar uma cena que imaginei para o roteiro de cinema que fiz para O Anjo Grave. Este livro já tem alguns trechos publicados aqui neste blog na série Monólogos. Alguns já estavam escritos e apenas retirei para postar aqui, mas outros eu incluí no Negro Crepúsculo, como por exemplo aquele que mais visitas recebe, justamente o que deu origem à série: O Jogo dos Espelhos. Além de agradecer novamente a Luiz Antonio Mello e reforçar o convite a todos que naveguem pelo seu site, queria recomendar um texto de outra convidada de LAM, Cyana Leahy-Dios. Ela fala da importância da leitura e da necessidade de se criar novos leitores neste país. Eu só posso apoiar com todas as minhas forças, afinal o que será do escritor se não houver mais leitor? Veja também: Monólogos 9 (A Solidão e a Angústia) Monólogos 5 (O Espírito dos Insensatos)

quarta-feira, 23 de março de 2011

A MIDIOTIZAÇÃO

Vinha eu dia desses caminhando pelas fétidas, esburacadas e lotadas ruas do centro do Rio de Janeiro (o lado modernoso que tombou o antigo) e não conseguia – na verdade, nem tentava - tirar da cabeça um pensamento profético de Nietzsche: "Mais um século de jornais e as palavras se corromperão". Muitas coisas se passaram na minha cabeça em torno disso, não propriamente sobre os jornais, mas sobre as palavras. As palavras não como símbolos da Comunicação, mas como expressão de algum sentimento, de alguma ação, comportamento, expressão, manifestação.

Assim, como de relâmpago, voltei ao pensamento nietzschiano e me lembrei que ele não contava (e nem poderia!) com a participação decisiva da televisão, muito menos da internet. O que os jornais levaram cem anos para fazer (talvez até menos), a TV realizou com absurda competência em poucas décadas. E a internet parece realizar em poucos segundos, embora por outro lado ela seja uma brecha interessante para quem não deseja se entregar a qualquer lixo e se manifestar - e espero que este blog seja um bom exemplo.

A era da rapidez da informação on line também expande as imbecilidades com muita pressa. E vejo diariamente em tempo real a mídia eletrônica vilipendiar a escrita automática, expressão criada por Maurice Blanchot. Automática sim, mas livre e espontânea, jamais.

Juntando tudo e voltando às palavras da forma como as citei, fui observando as pessoas nas ruas (o que já vinha fazendo desde o momento em que iniciei minha caminhada sob sol escaldante). E descobri que a TV fez muito mais que os jornais: ela corrompeu pessoas.

Percebi com bastante clareza que não há quase diferença entre gestos, modo de falar, andar, vestir (provavelmente também despir), o comportamento, enfim, das gentes nas ruas. Não há diferença sequer entre as putas da Praça Tiradentes e as dos escritórios e das faculdades. Nem entre os contínuos e os engravatados, ambos suando em bicas. Talvez a única diferença residisse nos mendigos, mas eles não valem, pois não assistem à TV com regularidade e nem chegam perto da internet. E olhei pra mim, que andava na contra-mão do fluxo, para ver se também eu não havia me corrompido, igualado, pasteurizado...

Diante de tudo isso, fiquei me indagando e até agora não encontrei resposta definitiva (e existe resposta definitiva para algo?): será que ainda há nesses turbulentos tempos em que vivemos espaço para manifestações espontâneas? Artísticas, principalmente, será? Sem a massificação de atitudes, conseqüência do máximo e praticamente único interesse comercial, é bem difícil identificar. É complicado até identificar quem pelo menos tenta, com honestidade, se livrar dessas amarras que a sociedade globalizada criou. De minha parte, continuarei a lutar ferozmente contra as mediocridades, inclusive - e principalmente - as minhas. Acabo de desligar mais uma televisão que esqueceram tagarelando sozinha...


Vídeo: "Televisão", de Marcelo Fromer, Tony Belotto e Arnaldo Antunes, com Titãs.