Escolhi - ou fui escolhido para - trilhar um caminho árduo, difícil, aquele que muitos sequer passam perto, o que invariavelmente leva às profundezas do ser, lá onde quase ninguém quer ir, nem saber o que há. Mas é onde cada um verdadeiramente é. Com tudo o que há de mais belo e mais horrendo.
Vou na contramão, mas é a escolha, não há volta. Acho que por isso tenho grande afinidade com quem fala sozinho e quem tem sérias divergências com o espelho.
Ilustração de John Tenniel para o clássico "Alice através do espelho", de Lewis Carroll. Vídeo: "Espelho" (João Nogueira/Paulo César Pinheiro), com João Nogueira.
CENA 1: dois meninos, um de 8 e outro de seis anos, sentados no chão, assistem à TV. Propaganda com imagens de dribles e gols: “Futebol ao vivo, amanhã!”
Os meninos se olham, levantam-se rapidamente, pegam a bola, improvisam uma baliza entre dois pés da mesa da sala e começam a jogar, um na linha, outro no gol. “Gol!”
CENA 2: os mesmos dois meninos, sentados no chão, assistem à TV. Propaganda com imagens de um jogo de basquete, com jogadas e cestas espetaculares: “NBA ao vivo, não perca este grande jogo!”
Os meninos se olham, levantam-se com pressa, pegam a bola e começam a quicá-la e arremessar para uma lata de lixo posta em cima da mesa. “Cesta!”
CENA 3: os meninos na mesma posição, novamente vendo TV. Propaganda com imagens de uma partida de vôlei, com defesas e cortadas, grandes ralis: “Vôlei ao vivo na sua tela, hoje às 21h!”
Os meninos se olham, levantam-se correndo, improvisam uma rede na varanda, com um barbante, e começam a jogar. “Que cortada! É ponto!”
CENA 4: novamente os dois meninos vendo TV. Propaganda com imagens de homens se agarrando num ringue, um esmurrando continuamente a cara do outro. Sangue espirrando pra todo lado: “Ultimate fighting, vale tudo pra você. Hoje à meia-noite, não perca!”
O mais novo nem tem tempo de olhar o mais velho, que lhe desfere um soco no meio do nariz e se debruça sobre o irmão, sufocando-o e batendo nele até se cansar.
Será que a forma como Amy Winehouse foi se matando e os “motivos” que a levaram a desistir da vida não são muito semelhantes aos dos outros astros que se foram aos 27 anos, com a única diferença de ela ter sido muito mais exposta do que os anteriores por viver num mundo paparazzo, bigbrotheriano? A degradação de Amy era espiada e transmitida quase diariamente pela mídia. Será que as angústias, dores, depressões e pressões que sofreu não foram tão intensas quanto às de Cobain, Morrison, Hendrix e Joplin? Talvez a ela tenha sido acrescido esse pré-show de Truman que vemos diariamente na internet e na televisão, mesmo que não queiramos.
Que o homem sempre se sentiu atraído pelo escândalo e os
crimes é uma verdade que existe desde que o mundo é mundo. Porém, creio que não
haja precedentes na história dos veículos de comunicação tanta bizarrice e
sangue para alimentar os consumidores sedentos e famintos da vida alheia. A
glamourização do grotesco está nas páginas e telas sendo vendida como o último
grito da moda desde o movimento punk.
Veja na cabeça de Neymar e seus imitadores o resultado da
manifestação daqueles garotos pobres da Inglaterra, que revoltados por não
terem grana pra pagar ingressos dos shows das mega-bandas dos anos 60 e 70
começaram a protestar gritando e xingando contra aqueles que amavam. Primeiro
se tornaram tão ricos e famosos quanto os ídolos e depois foram vendidos em prateleiras
de lojas de vestimentas e supermercados. Che Guevara também sofreu o mesmo
processo depois de morto, mas isso esticaria demais este assunto.
Mas não é só, claro que não. No Brasil, por exemplo, veja
nas bundas e peitos inchados das mulheres hortifrutigranjeiras (mais granjeiras
que frutas e hortaliças) e nas desafinadas e “belas” e “cantoras” que surgem
diariamente o quanto Gretchen, Rita Cadilac e Xuxa foram influentes para as
jovens dos últimos 30 anos. Veja o quanto elas vêm se deformando para ficarem
parecidas com esses grandes exemplos. Veja no fânqui (funk carioca) como o que
de pior existia na música e cultura americanas mais a cultura do tráfico fez
com a cabeça e os corpos de adolescentes dos barracões às mansões nos últimos
20, 30 anos.
Por fim, veja na mídia e nos seus patrocinadores: a bizarrice tem mais valor que a arte.
Não me apego ao livro como objeto. Há quem goste de senti-lo nas mãos, até cheirá-lo. Eu só quero lê-lo. O que me interessa necessariamente é o que ele contém, suas palavras, suas frases, suas idéias, suas imagens.