"Futebol", de Orlando Teruz |
Hoje divaguei um pouco em pensamentos desconexos sobre futebol. Na verdade, tudo começou quando, encadeado a outras lembranças que agora não me recordo mais, percebi que as peladas de rua morreram no bairro da Zona Norte carioca onde cheguei em 1971 e em muitos, muitos outros do Rio de Janeiro. Isso para não dizer em todos, pelo menos em todos por que passei nos últimos 10 anos ou mais (me diga um que ainda tenha para eu ir). Lembrava das muitas que joguei em ruas bem e mal asfaltadas, de paralelepípedos, de terra, esburacadas, um pouco íngremes, até em ladeiras (bom era jogar no time de cima). Voltou à minha mente também o dia em que, no afã de salvar um gol, fui atropelado por uma Brasília – ou a atropelei, já nem sei.
A violência urbana certamente afastou a criançada das ruas para jogar bola e a atraiu para fazer malabarismos nos sinais de trânsito, mendigar e cheirar cola. Lembro muito bem da voz imponente de João Saldanha no radinho de pilha criticando, ainda na década de 70, a especulação imobiliária que andava acabando com os campinhos de pelada. E os playgrounds dos prédios, que brotaram como mato nesta cidade, com o tempo deixaram de ser espaço para a criançada se divertir para virar local de festas de adultos, cada vez mais reservados e caros.
Logicamente estou aqui falando da classe média, média baixa, porque no andar debaixo da pirâmide social - fora as antenas parabólicas e os "gatonets" – talvez tenha mudado um pouco menos, embora o espaço tenha ficado cada vez mais apertado nas favelas. A pelada sempre foi um fator de integração entre os garotos das mais variadas idades e classes sociais. Ali, no campinho improvisado no meio da rua, com balizas demarcadas com chinelos, latas, pedras ou até mesmo com estacas de madeira presas das mais diversas maneiras, todos se encontravam, dividiam-se em times para correr atrás da bola de borracha, plástico, couro ou meia. A distinção só existia para os que a controlavam melhor. Eram os mais respeitados e logo escolhidos, quando não eram os próprios a tirar o par ou ímpar ou "adedanha" e montar seus times. E entre os melhores poderia estar o neguinho do morro, o branco azedo da maior e mais bela casa da rua, o moreno da casa pobre da esquina, o cara de índio do prédio mais velho, ou o mestiço do prédio mais alto e luxuoso. O gordinho, o magrelo, o baixinho, o grandão, tanto faz. Neste aspecto as meninas de outrora levavam uma grande desvantagem.
Hoje, essa integração que as ruas promoviam estão extintas. As crianças estão separadas por grades, muros, entre escolas particulares e públicas, as ruas cada vez mais cheias de carros sempre velozes e furiosos e o futebol nosso de cada dia cada vez mais esquematizado taticamente e empobrecido tecnicamente. Se uma coisa é conseqüência da outra não posso precisar, mas posso intuir ou desconfiar. É o que sinto. Há muitos outros aspectos, sem dúvida. O modo de vida das pessoas no Rio – só para não ter a pretensão de dizer que é no país inteiro - mudou muito. E se sinto cada vez menos prazer em assistir a um jogo de futebol (as duas últimas Copas do Mundo foram pavorosas, numa decadência que vem da pior que assisti, a de 1990) é porque fui muito mal acostumado – ou muito bem, dependendo do ângulo que se veja. E não só pelos grandes jogadores que via no Maracanã e na televisão na época de torcedor, mas pelos que enfrentava ou tinha como companheiros nas peladas de rua. Joguei com muita gente que teria facilmente chegado à seleção brasileira se tivesse se profissionalizado.
Esse apartheid brando do Rio de Janeiro que vislumbrei desmoronando a cidade no apito final das partidas de futebol disputadas em campos improvisados – e não do Playstation – me levaram em viagem para a Europa, onde o racismo recrudesce de maneira clara e tem nos estádios ou arenas um de seus palcos principais. Se no dia-a-dia, desconfio, essa discriminação é mais disfarçada – ou menos explícita –, foi nos campos de futebol profissional que ganharam força, porque a massa esconde o indivíduo. E, como todos sabem, o covarde só é forte quando se traveste de multidão. Vejo com tristeza, certa amargura até, a minha paixão infanto-juvenil, o futebol, ser usado por fascistas para manifestarem suas frustrações, seu ódio à vida, às diferenças. Esse racismo contra tantos africanos e brasileiros que atuam em clubes da Europa - e agora Neymar na vitória do Brasil sobre a Escócia - está revestido do fascismo que sempre ressurge em períodos de crise econômica. Certamente esses estúpidos que levam bananas aos estádios, não para se alimentar, mas para ofender, estão incomodados com os negros – ou estrangeiros de todas as cores e credos – que, segundo eles, estão ocupando um espaço que lhes pertence.
Aqui no Brasil, os fascistas do futebol se integram a torcidas organizadas para atacar quem não torce para o mesmo time e os homossexuais. São os pitboys. Nunca apreciaram uma boa partida de futebol, jamais jogaram uma pelada na rua ou em qualquer lugar. Para eles, mais até do que o time, é a torcida – ou quadrilha – organizada que precisa ser defendida, atacando quem pensa diferente. Para eles, melhor que o grande clássico é o encontro com os rivais - inimigos - para se digladiarem dentro ou fora dos estádios.
Diante de tudo isso me vem uma pergunta à cabeça: chegará o dia em que será preciso tirar a bola, os jogadores e o árbitro de campo para que esses fascistas adentrem o gramado e transformem em campos de batalha medievais as luxuosas arenas do mundo?
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