quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A NECESSIDADE DO DESEJO

Fui ao quarto da minha filha desligar a televisão quando vi a imagem de um palco escuro e logo em seguida o conhecido rosto sorridente do ator Juca de Oliveira, já num cenário bem claro. Resolvi escutá-lo, e ao comentar sobre a peça Rei Lear, que encena como monólogo no Rio, ele disse algo que é de uma obviedade rodrigueana (aquela que quase ninguém enxerga): “Até o mais miserável dos mendigos tem o desejo de algo supérfluo para se reconhecer como humano. Se ele apenas supre suas necessidades básicas, não sai da condição de animal”. Lançou esta e completou com uma clara intenção política que quero eliminar daqui para me ater apenas à questão filosófica: “Marx não deve ter lido Shakespeare”.

Certo que o desejo para o ser humano (“a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”) tendo essa magnitude que Juca expressou por intermédio do bardo inglês passa a ser também uma necessidade. E passando a ser mais importante que tudo, repetidamente, significa vício. Certo também que o ser humano tendo somente as suas necessidades básicas satisfeitas, passa a abanar o rabo e a seguir seu dono. Não é difícil imaginar como os tiranos de todas as correntes ideológicas dominaram - e dominam - seus povos, direcionando seus desejos (o supérfluo citado pelo ator) aos seus objetivos mais funestos.

É uma equação até fácil de se resolver, me parece, se assemelha mesmo a uma lógica matemática. O líder supre o básico de seus comandados e, como sabe que eles depois de algum tempo não se contentarão só com o que lhes é oferecido, pois se entediarão, inventa um inimigo, um medo a ser vencido, uma guerra. E assim rastejaria a Humanidade não fossem os rebeldes, os pensadores, os sonhadores, os contestadores corajosos para pensar, sentir e agir com independência. Aqueles que pensam por si próprios, sem se deixar levar por ondas.

São eles que tiram a Humanidade da letargia, são eles que fazem o outro se levantar da cadeira com os olhos brilhando a enxergar um novo e amplo mundo à sua frente, com milhões de possibilidades. É ele, o poeta de todas as artes e ofícios (o artista no sentido mais amplo da palavra, abarcando todas as áreas do conhecimento), a verdadeira antena da raça, se assim Ezra Pound me permite citá-lo.


Ilustração: "Rei Lear e o bobo na tempestade", de William Dyce (1806-1864)
Vídeo: "Comida" (Arnaldo Antunes/ Sérgio Brito/ Marcelo Fromer), com Titãs
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Fábrica de ídolos
A midiotização
A mídia bizarra

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

MÚSICA PRA VIAGEM: SELVA AMAZÔNICA

Começo esta nova série aqui no blog com "Selva Amazônica", música de Egberto Gismonti que me paralisou desde a primeira audição, em meados dos anos 90. Esta longa música instrumental, tocada pelo mestre num violão de 8 cordas (e mais voz, surdo e cooking bells), abre o CD "Solo", gravado em 1978, e tem me feito ao longo desses quase 20 anos, todas as vezes que a ouço, viajar não só pra selva - ou pra selvas - mas ao Norte e Nordeste do país que posso dizer praticamente desconheço (só estive em Salvador e Jauá, na Bahia, por duas semanas entre o fim de 2005 e o início de 2006). No CD, "Selva Amazônica" é tocada junto com Pau Rolou, cantada por Egberto, mas em outra versão que aqui apresento, é "só" ela mesmo, em apresentação ao vivo em Berlim com outro mestre, Naná Vasconcelos, que certamente estará aqui em breve.

O CD Solo achei numa loja de discos que não existe mais há muitos anos, na Avenida Amaral Peixoto, em Niterói. Estava na época à procura de um CD do Egberto há muito tempo, e foi este que inaugurou a pequena coleção do multi-instrumentista brasileiro que juntei a partir de então (mais 4 ou 5). Nem preciso dizer que gosto muito deste disco, que todo ele é espetacular, mas "Selva Amazônica/Pau Rolou" é que me capturou de vez. Prepare-se, siga as setas abaixo. Ótima viagem.


Vídeos:
o primeiro é a gravação original do CD Solo com belas fotos de Luciano Daini e o segundo é uma gravação de uma apresentação ao vivo de Egberto Gismonti com Naná Vasconcelos, em Berlim, postado no YouTube por Mateus Talles.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

MÃE EXALTA O AMOR EM "O FILHO DE MIL HOMENS"

Valter Hugo Mãe
Com o amor ao próximo tão fora de moda é realmente uma felicidade ler um livro que o eleva ao patamar do qual jamais deveria deixar: o da máxima grandeza. Em seu "O filho de mil homens" (Cosac & Naify), o escritor Valter Hugo Mãe, nascido em Angola, mas que vive em Portugal desde a infância, proporciona aos anacrônicos, sonhadores, utópicos ou ingênuos voltarem a acreditar que o sentimento que nos torna além-humanos ainda está vivo, mesmo que numa ficção. Porém, como já escrevi algumas vezes há mais verdades nas ficções do que no noticiário do dia-a-dia, é mais que uma esperança, bate uma certeza de que os tempos, eles mudarão.

Com notória influência de José Saramago e Gabriel García Márquez, Mãe tece seus personagens individualmente, com ternura, para ir entrelaçando-os ao longo da trama, numa narrativa envolvente, acolhedora, embora a dor, a discriminação, a ignorância, a intolerância, a ganância estejam bem presentes para nos mostrar em contraponto a beleza dos opostos - ou do oposto - disso tudo. Com o pescador Crisóstomo à frente de todos, como um condutor do mais nobre sentimento, Mãe faz jus ao sobrenome e exalta o amor maior, o verdadeiro e gigantesco e puro amor em tempos de egoísmos extremos, em plena Era do Cinismo.

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