sexta-feira, 27 de maio de 2016

ESQUIZOFRENIA *

O ser cindido vive em dois mundos: o real e o imaginado. Além deles, ainda se pode considerar um terceiro (a terceira margem?), o da tênue linha fronteiriça que separa um do outro. Todo artista de verdade possui algum grau de esquizofrenia. Postado racionalmente no mundo mesquinho da realidade, dos afazeres práticos e ou reconfortantes, o homem age maquinalmente, absorve ordens, cumpre seus deveres, exige direitos (até os que não tem), diverte-se, joga conversa fora e flana sobre a superficialidade apenas tangenciando-a. Na era do entretenimento paranóico, esta é a lei.

No entanto, quando o homem avança, mergulha e investiga com todos os seus sentidos aguçados e concentrados o mar infinito que é seu próprio ser ou atravessa a pesada porta que o impele a não sair do lugar e vai onde quanto mais fundo, mais escuro e denso, torna-se possível trazer algo novo à tona e se tornar um ser criador.

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Mas aqui não cabem ilusões, paga-se um alto preço por isso, muito alto. Não ser compreendido, é apenas um. O pior de todos é não conseguir sair da fronteira: desprezar a superficialidade e não se aprofundar. Ficar preso ao imaginário e ao caos interior ou confundi-lo com o real é outro grande risco que se corre. É a doença, quando o homem é controlado por sua mente, quando ele se faz refém de si mesmo. Alguns artistas se afundaram nessa, muitos empurrados pelas drogas alucinógenas encontraram a sua morte, física ou mental.

Porém, a mediocridade de não escolher, de não decidir, a falta de coragem para romper barreiras e se acautelar faz do homem um rato medroso, um medíocre. Faz a alma humana aprisionada no corpo do cão o olhar com desprezo. E a fraqueza ou falta de fôlego para retornar e trazer a boa nova o joga no limbo, é também apenas um existente.


* Este texto já havia sido publicado e retirado por mim algumas vezes aqui. Agora daqui não sairá mais 

Ilustração:"Only opens, when open for fantasy", de Ben Goossens.

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sexta-feira, 6 de maio de 2016

NISE DA SILVEIRA: O AFETO E A ARTE COMO PODER

Nise da Silveira
Glória Pires não me parece nos seus melhores dias (como Lota Macedo Soares em "Flores raras" ela está bem melhor, no meu modo de ver), o filme não ficará na História do cinema, mas "Nise - O coração da loucura", dirigido por Roberto Berliner, merece ser visto por todos os brasileiros. Todos, sem exceção. E nem tanto pelas maravilhosas interpretações dos atores que encarnaram os loucos do Hospital Psiquiátrico do Engenho de Dentro, mas pelo maravilhoso exemplo que representa a doutora Nise da Silveira. Uma brasileira que nos faz lembrar que não é só de pilantras, bandidos, corruptos, ególatras e mal-amados vive este país.

Infelizmente, temos visto cada vez mais a nossa imprensa (mídia) e nossos (des)governos dando mais valor aos que nada valem, do que àqueles que mereciam uma estátua em cada esquina desta imensa terra. Nise da Silveira enfrentou um mundo altamente machista, ególatra, frio e indiferente ao outro, os pseudo-deuses da medicina, para fazer valer o afeto. E com essa ferramenta poderosa fazer seus esquizofrênicos se transformarem em grandes artistas e - muito mais do que isso - conseguirem levar uma vida digna e serem respeitados.

Curiosamente, antes da sessão de cinema (mais uma vez tive de me deslocar para a sempre privilegiada Zona Sul), passou o trailer de um filme sobre um "ídolo" daquela pancadaria vale-tudo que não preciso citar. E logo no início de "Nise" há uma cena de uma briga selvagem entre dois loucos, incentivados por outros mais dementes enfermeiros, funcionários e outros pacientes, ou melhor clientes, como a doutora gostava que os chamassem. Qual a diferença entre uma selvageria e outra? Só no cenário mais rico e arrumadinho das rinhas humanas bancadas por empresas milionárias e televisões poderosíssimas. Todos dementes.

Um dos brigões do Engenho de Dentro, o mais violento, é Lúcio Noemann, que através do trabalho paciente e amoroso de Nise da Silveira, pôde se revelar um artista de mão cheia. Não para esmurrar adversários ou inimigos, mas para esculpir, moldar, criar obras de arte. E emocionar. Do mesmo modo, Emygdio de Barros, Adelina Gomes, Raphael Domingues, Carlos Pertuis e Octavio Ignacio (clique aqui para saber mais no site do Museu de Imagens do Inconsciente)

Emygdio de Barros

Houvesse uma enquete nas ruas deste país para saber quem conhece ao menos um pouco do legado de Nise da Silveira para o mundo, duvido que os resultados fossem animadores. Isso é que é triste, isso é que é loucura. Uma das muitas faces da loucura compartilhada diariamente por aqueles que vivem no lado de cá dos muros manicomiais.
  

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Apesar do trabalho revolucionário e humanista capitaneado pela doutora Nise da Silveira, ainda na década de 40, a poucos quilômetros do Rio de Janeiro, em Barbacena (MG), um verdadeiro campo de concentração matava lentamente e lucrava muito com a venda de corpos, como descrito no livro "Holocausto brasileiro", de Daniela Arbex.

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Fábrica de ídolos
A Terra de Salgado