quarta-feira, 19 de agosto de 2009

ENTREVISTA: NELSON PEREIRA DOS SANTOS*

“O cinema brasileiro é a salvação para a TV”

*Entrevista concedida a Alexandre Arruda e Eduardo Lamas em 2001 para o extinto site "Papo Carioca"

Nelson Pereira dos Santos está para o cinema brasileiro assim como Nelson Rodrigues está para o teatro deste país. Ambos fincaram um marco em ambas as artes, com a genialidade e o pioneirismo, introduzindo uma linguagem ao mesmo tempo brasileira e universal de se fazer cinema e teatro. Não por acaso, foi o xará Pereira quem primeiro levou a obra de Rodrigues para o cinema (“Boca de Ouro”). E também, não pela casualidade, foi um dos poucos cineastas que respeitou a obra do mestre do teatro nas telas. Aos 72 anos de idade, Nelson Pereira não se deitou sobre os louros da glória de ter escrito seu nome na história do cinema e continua trabalhando, criando. E tocando em feridas. Ao contrário do que muitos pensam, ele afirma com a tranqüilidade dos sábios e a sabedoria dos visionários que o cinema nacional não será salvo pela união com a televisão, e sim o inverso. E mais, não se refere somente à qualidade que tanto tem faltado às emissoras de canais abertos, mas também ao aspecto financeiro.

Essa declaração e muitas histórias - como o encontro com Nelson Rodrigues, que ele relata com muito humor - estão nesta entrevista que Nelson Pereira dos Santos concedeu ao PAPO CARIOCA, num fim de manhã calorento em seu apartamento na Zona Sul do Rio de Janeiro. Um dia que pode ser muito bem definido com o título do filme que abriu os caminhos para Nelson Pereira e o Cinema Novo: “Rio 40 Graus”.

A sua obra é bem marcada por tipos regionais, o Cinema Novo principalmente. E um dos grandes vencedores do último Grande Prêmio Brasil de Cinema foi “Eu, Tu, Eles”. O senhor gostou do filme?
- Eu gosto muito. O outro filme do Andrucha (Waddington) também é muito bom, o do Nelson Rodrigues, “Almas Gêmeas”. É muito interessante o filme.
O senhor filmou também Nelson Rodrigues...
- Foi o primeiro filme do Nelson Rodrigues. Em 62. Tem tempo hein...

Inclusive o Nelson reclamava muito dos filmes que eram feitos baseados na obra dele. Ele dizia que deturpavam muito a obra dele. E um dos poucos filmes que ele dizia que foram bem feitos era o “Boca de Ouro”, dirigido pelo senhor.
- É verdade. Embora, quando ele viu o filme ele me disse (imitando o jeito de Nelson Rodrigues falar): “Xará, você puritanizou a minha obra”. (risos)

Houve na época alguma colaboração dele no filme?
- Ele dava inteira liberdade. Inteira liberdade. Eu levei o roteiro para ele ver e ele (novamente o imitando): “Eu não quero ler, quero ver o filme” (risos).

Foi o primeiro filme baseado na obra dele?
- Foi, o “Boca de Ouro”.

Até então nenhuma peça dele tinha sido filmada?
- Não. Tem uma adaptação de um romance em que ele usou um pseudônimo. Foi feito em São Paulo, nos anos 40 ou nos anos 50. Ele tinha um pseudônimo, Suzana Flag. É um filme de um italiano. Como ele se chamava? Rugero Jacob, que fez uma adaptação. Mas não era o Nelson dramaturgo, aquele figurão.

Sobre a sua obra, pode-se dizer que ela sempre teve a preocupação de revelar o Brasil para os brasileiros?
- É, isso é verdade. Já disse isso outras vezes, mas em todo caso vou repetir: sou muito grato à minha geração, a esses autores do século passado, o século XX (rindo), que fizeram a cabeça da gente. Principalmente, a gente encontra na literatura brasileira, autores como os meus conterrâneos Mário de Andrade, Oswald de Andrade; os nordestinos, o Graciliano (Ramos), o Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Lins do Rêgo (José Lins do Rêgo)... E os pintores modernos, Di Cavalcanti, Pancetti... A música, o Villa-Lobos. Você vê que o Cinema Novo é impregnado de Villa-Lobos (rindo). O cinema conseguiu dar um passo no sentido da descolonização. O que já tinha acontecido com a literatura, com a pintura, com a música... O grande exemplo é a Semana de Arte Moderna. A função do Cinema Novo foi exatamente a de começar um processo de descolonização na área do cinema. Vocês se tiverem tempo, se já não viram, os filmes que eram feitos antes do Cinema Novo, com raríssimas exceções, eram totalmente colonizados. Era um cinema sem nenhuma intenção de refletir a nossa realidade. A realidade física, não é.

O “Vidas Secas” é considerado o grande marco...
- Antes de “Vidas Secas”, é o “Rio 40 Graus”, que é de 55.

O “Rio 40 Graus, então, é o primeiro filme que mostrou a nossa realidade?
- Isso, é o chamado Brasil real.

Nelson Pereira divide com Glauber Rocha as honras da criação do Cinema Novo, embora um sempre atribuísse ao outro o título de criador. Enquanto que para Nelson, o Cinema Novo existia toda vez que o baiano Glauber vinha para o Rio, Glauber afirmava que Nelson e Godard (Jean Luc Godard, cineasta francês) eram seus grandes inspiradores. Essas declarações estão na entrevista que Nelson Pereira deu ao jornalista Tonico Mercador, publicada na edição de abril de 2000 da revista “Palavra”.

Nessa mesma entrevista, Nelson Pereira dos Santos disse que em meados dos anos 50 quando chegou ao Rio de Janeiro, vindo de São Paulo, tomou um choque ao conhecer as favelas cariocas. Segundo o cineasta, ele não conhecia até então favela no morro, só “na horizontal”. E ao freqüentar a favela do Jacarezinho, perto de onde ficava o estúdio em que foi morar após ser assistente de direção de Alex Viany no filme “Agulha no Palheiro” e onde era filmado o “Balança, mas não cai” - no qual foi assistente de produção - teve a idéia de filmar “Rio 40 Graus”.

O senhor disse em uma entrevista que a favela naquela época era a mesma coisa de hoje, só inchou, não tem diferença.
- É cresceu, cresceu...

A única diferença é essa, não é?
- Exatamente.

O ambiente, é tudo a mesma coisa?
- A mesma coisa.

Então o senhor concorda com o Zuenir Ventura, no que ele escreve naquele livro “Cidade Partida”, que essa visão ufanista de que nos anos 50 não era assim? Já era, só não era mostrado e era em menor proporção. Seria isso, então?
- É, isso mesmo. Quando eu fiz “Rio 40 Graus”, a população favelada do Rio de Janeiro era de 200 mil habitantes. A população do Rio de Janeiro, 2 milhões de habitantes. Dizem que hoje, 200 mil é só na Rocinha. (ri) Agora não existe mais a favela tal, favela tal, acho que o Rio de Janeiro todo é favelado. Todas as montanhas.

Hoje existe no Rio até a favela horizontal, que não existia naquela época. No Rocha, por exemplo, no viaduto em direção ao Túnel Noel Rosa existe uma favela debruçada sobre a pista.
- É verdade, e no caminho para Jacarepaguá também, na Ayrton Senna. O estúdio é ali no começo da Estrada do Gabinal. No começo dos anos 90, eu fui pra lá, com o negócio do Collor transferi meu escritório para lá. É uma área grande, era verde, e aí começou a ter um barraco, outro, outro, outro... Você passa lá hoje é uma cidade, horizontal.

O senhor disse na mesma entrevista à revista “Palavra”, que quando veio de São Paulo para o Rio (nos anos 50) não conhecia favelas em morro.
- É, era o cortiço...

Agora tem tudo...
- Tem tudo (ri). Quando eu cheguei, a favela estava lá em cima. A população de São Paulo naquela época era de 1 milhão de habitantes nos anos 50, 55.

Agora, voltando ao cinema, o senhor filmou Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Jorge Amado. Quais foram as principais dificuldades e as características de cada um? Por exemplo, “A Terceira Margem do Rio”, que é um filme complicado de ser feito, o senhor juntou cinco histórias (de Guimarães Rosa). Costurar isso deve ter sido muito difícil? E o Graciliano, o senhor pegou um texto só, mas tem toda aquela problemática da meticulosidade do Graciliano.Quais foram as principais barreiras para filmar as obras desses autores?
- Eu não tenho método de trabalho, eu vou trabalhando à medida que vou experimentando a matéria. No caso do Graciliano tenho duas experiências bem diferentes. Em “Vidas Secas”, é uma questão de transpor para a linguagem do cinema, toda aquela questão do ambiente, da luz e do comportamento dos personagens. E o roteiro está praticamente no livro, com poucas invenções. Na realidade são duas invenções, que não têm no livro. Ou melhor, as cenas que eu inventei, que eu acrescentei, estão sugeridas no livro. Melhor dizendo, elas não estão sugeridas, elas estão pensadas, elas não acontecem. Uma é quando ele (Fabiano, o personagem principal) sai da cadeia e tem um grupo de cangaceiros. Essa idéia de entrar no cangaço ele tem dentro da cadeia sofrendo a surra que levou. Ele começa a projetar, aquela coisa da vingança, “eu vou matar aquele filho da puta e vou entrar no cangaço, vou virar cangaceiro, vou arrasar com esses caras todos”. Tudo isso é a revolta dele. E também fazer o que não gosto, e não acho legal fazer, é trabalhar com câmara subjetiva e uma voz em off. Acho que esse é um recurso muito pobre, uma muletazinha. Quando ele vai pensar, aí vem a voz off “bababá bababá” (risos). Essa idéia toda da revolta é concretizada em uma cena, que nasce e se apaga, porque tem a família, as crianças... E toda observação do Graciliano é sempre nesse sentido: ele desce para a realidade humana mais dura...

Mais pesada...
- Mais comprometida com a realidade. O Graciliano foi um revolucionário muito... Digamos assim: ele não era de fumaças. E isso a gente vai ver em “Memórias do Cárcere”, em que ele goza todos os revoltados...

Todas as tendências...
- É, tinha gente querendo fazer a revolução dentro da cadeia. Já perdeu a guerra, já está preso! (risos) E fica brincando... Brincando não, ironizando esse tipo de comportamento. Porque isso é muito ligado a uma realidade dolorosa, pesada, que condiciona o ser humano.

E que ele vivenciou?
- E ele vivenciou isso, conhece bem, não é. Agora, a experiência com “Memórias do Cárcere” foi outra. Foi a de procurar uma síntese. O livro tem quatro volumes e mais de mil personagens e tentei reduzir a um bloco que pudesse contar a história que ele passou e no fundo é uma viagem. A história de “Memórias do Cárcere” é uma grande viagem do cara classe média, nordestino, diretor de instituição pública, que vai parar na mais baixa condição humana que existe na sociedade brasileira. E tudo isso, ele no começo, quando sabe que vai ser preso começa a idealizar a prisão. Começa a comparar como se fosse para um castelo, prisioneiro, a Bastilha. E começa a escrever as memórias, denuncia (ri). E tomas umas cachaças e fica brincando entusiasmado nesse sentido. “Memórias” é uma viagem do intelectual, do personagem filósofo, intelectual, escritor, humanista. Ele passa a enfrentar condições desconhecidas para ele, digo no plano concreto. Ele conhecia na literatura, mas encontrar aquelas condições verdadeiras...

Não tinha sofrido na carne, na pele?
- É, isso... Houve uma dificuldade, porque o livro é muito detalhista, tanto psicologicamente - ele o tempo inteiro se analisa no livro, questiona muito... Isso... a própria condição dele - quanto no ambiente.

Houve uma dificuldade para fazer essa síntese?
- É trabalho, não é. A única dificuldade é trabalho. Houve muitas versões, fazia, refazia, fazia, refazia... Com a grande colaboração do Vereza (Carlos Vereza, ator que interpretou Graciliano no filme) para criar o personagem, porque o ator aí é fundamental. Ele também é uma pessoa que tinha um conhecimento do livro, do Graciliano, da realidade brasileira, das questões sociais. Então ele soube criar o personagem, viver aquele personagem. Aquele personagem foi criado na vivência. Nós filmamos na ordem cronológica do livro, não foi na ordem do interesse da produção.

No filme, há uma inversão cronológica, não é? Que é quando ele sai da prisão. O filme fecha...
- Quando ele sai da prisão, é.

Quando na verdade no livro, ele sai da prisão e acontecem mais fatos...
- E volta...

... o senhor passou para frente. Essa foi uma necessidade mesmo para amarrar o filme, porque já estava longo?
- Não, na adaptação achei melhor para fechar, porque aí ia voltar para a segunda prisão, é uma repetição, não é. Então, os episódios mais importantes eu coloquei antes, para fechar depois no inferno e vai embora. Também com o telegrama do presidente da República... (rindo) Chega, não quero mais! (risos)

E com a “Terceira Margem do Rio”?
- A “Terceira Margem” foi uma tentativa de juntar cinco histórias diferentes entre si, com narrativas diferentes, e juntar numa só, fazer uma só narrativa num filme. Em vez de fazer esse conto, depois outro conto, juntei tentando reunir tudo a partir do núcleo familiar. A menina Dilá. Tem a história dos irmãos Dagoberto, tem a história da vaquinha. Como é que começa essa família, a história da vaca, da vaquinha Pitanga. Então juntei todas, a do famoso pistoleiro, do matador filósofo. Juntei as cinco histórias numa só e foi um trabalho de mesa, de composição literária etc. Agora, o “Terceira Margem” tem um problema de produção, que é uma outra coisa. Uma dificuldade aparece na produção. É o primeiro filme depois do Collor! É brincadeira, pôxa, eu não tinha nada.

E como está hoje a situação do cinema brasileiro, já passado esse trauma collorido? Esse renascimento está mesmo acontecendo?
- Eu acho que está. Está havendo, o número de filmes produzidos e a média está sendo mantida. E isso é um bom sinal, porque quando tem assim uma euforia, cresce e depois cai. Está mantendo firme, trinta a quarenta filmes por ano. Acho que está indo bem. Agora está com os mesmos problemas de sempre: distribuição e exibição. O mercado brasileiro não é para o cinema brasileiro, é para o cinema americano, que ocupa aqui há muitos anos e é uma questão histórica até. Mas na medida que os filmes estão sendo feitos, há um avanço nesse mercado, na participação brasileira. No tempo da Embrafilme, chegou-se a ter uma participação de 35%. Agora, acontece o seguinte, o grande mercado não é mais o mercado das salas, é o mercado da televisão e vídeo. Na televisão, o cinema brasileiro não tem vez. (rindo) Só tem o gueto do Canal Brasil.

Os canais abertos...
- Nem pensar!

No ano passado foi feito “O Auto da Compadecida”, que foi uma experiência. Aliás, o filme não foi feito para o cinema, foi feito para a TV, depois é que se pensou em fazer para o cinema. Parece que haverá um encontro do pessoal do cinema com o da TV para alinhavar essa união. Como o senhor vê isso, é uma boa idéia?
- É fundamental, é fundamental. Eu vou dizer uma coisa: não é a salvação para o cinema não, é a salvação para a televisão. Porque a televisão brasileira está distanciada de toda a cultura brasileira, a televisão aberta. Está distanciada, está ficando no circo. Não quero dizer que não seja cultura também, mas não se tem nenhuma relação, com raríssimas exceções, com a vida cultural. É uma máquina de fazer dinheiro. Ao mesmo tempo, ela está economicamente à beira de uma quebra, porque ela cresceu tanto, produz tudo o que faz, tem 30 mil empregados, então está realmente numa condição muito difícil. E a salvação vai ser terceirizar! E vai terceirizar como? Pelo cinema brasileiro, que tem uma experiência já acumulada, tem condições, tem gente, tem artistas, tem talento, tem tudo, know-how para produzir filmes, espetáculos fora do núcleo televisivo.

Ou seja terceirizar a produção?
- Terceirizar a produção, que continua com a mamata da publicidade. A fórmula de produzir tudo e ter toda a publicidade chegou a um ponto que a produção está custando mais caro que a renda da publicidade. Então é possível que esse acordo vá ser feito e vai ser vantajoso mais para a televisão do que para o cinema. Embora para o cinema vá ser muito vantajoso... E se essa conversa está rolando é porque eles estão precisando. Porque se não precisassem, estaria a mesma coisa até hoje. Quer dizer, filhos da ditadura acumularam grana, como a Varig etc, ficaram no bem-bom, protegidos pelo Governo a vida toda. A verba de publicidade do Governo é enorme, não é isso?

E agora estão sentindo...
- Agora tem que dividir o prejuízo. Então, acho que vá ser um momento importante, apesar de que a televisão é muito comprometida com o cinema importado, o cinema americano basicamente. Você vê, a quantidade de filmes que cada uma delas exibe de filmes americanos é muito grande. Na realidade, a televisão no Brasil nasceu como uma exibidora de filmes americanos.

Até as próprias novelas quando começaram aqui eram com histórias de fora...
- É, o horário nobre era série americana, o detetive não sei quantas... Então, a novela tem essa grande função. Antes ela era colonizada, depois deu uma virada, com Bráulio Pedroso, Dias Gomes... Nacionalizou a dramaturgia. Nacionalizou no bom sentido, quer dizer, abrasileirou a dramaturgia.

Teve uma época em que a televisão produzia muita minisérie baseada em obras de escritores brasileiros. E a partir da década de 80 até meados de 90 diminuíram muito. Reclamavam que a produção estava ficando muito cara e por isso estavam fazendo pouco. E agora pode retornar a esse tipo de produção com o pessoal do cinema, não é?
- Eu acho que o momento é importante nesse sentido. Acho que o cinema vai realmente começar uma nova fase, de auto-suficiência. Porque a relação com o Estado é a pior que existe, porque o Estado deu e depois tirou. (rindo) Deu porque os militares precisavam de uma relação com a cultura, aí eles perguntaram: “qual é o mais fodido de vocês? É o cinema? Ah, então vem cá, vocês agora e tal, Embrafilme não sei quê e tal...” E o segundo presidente militar da Embrafilme queria acabar. O Geisel criou e o Figueiredo queria acabar (ri). Não demorou muito e foi fritando a Embrafilme. Foi fritando, fritando até chegar o Collor e jogar fora.

Quando chegou no Collor já estava praticamente inviabilizada?
- Estava . Não tinha mais a mesma função de quando começou.

Na época da Embrafilme, a distribuição era mais fácil de ser feita?
- Porque a Embrafilme bancava a distribuição.

E o grande problema de hoje é esse, não é?
- Ainda é. De distribuição e basicamente de... Quer dizer a distribuição depende do exibidor. Os exibidores são filhotes dos americanos, eles têm a programação deles garantida para o ano todo. “Olha, você tem o Titanic, mas você tem que exibir...”. Isso é velho, isso é antigo, rola isso sempre...

Mas mesmo essa distribuição na época da ditadura, que era muito grande, era nesses padrões, ou seja: “você tem que passar o filme nacional, bom ou ruim, tem que passar”. Isso também não ajudou a criar um...
- Isso é horrível! A obrigatoriedade é contraproducente. Não interessa de jeito nenhum, porque também cria um gueto...

Só inverte a situação...
- Só vai fazer com que os filmes mais, vamos dizer assim, os filmes mais oportunistas tenham vez. A obrigatoriedade foi usada para passar filme pornô. Eram 180 dias obrigatórios, desses 180, acho que mais de cem eram para passar os filmes pornôs que na sua grande maioria eram produzidos pelos próprios exibidores. O que rolava era isso. Dessa série de pornôs até que saíram bons filmes, bons diretores trabalharam lá.

Está sendo anunciado o que dizem ser uma revolução no cinema com o fim da película, com a imagem digital. Vai acabar mesmo a película, o que o senhor acha, é uma revolução mesmo ou só um desenvolvimento normal?
- Olha, várias revoluções já aconteceram. Eu me lembro do Super 8, que diziam que ia acabar com o 35 (milímetros), “é a liberdade do cineasta etc”. Isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde, o digital vai ganhar o seu espaço. E muitos filmes já estão sendo feitos assim. É uma grande vantagem, diminui a equipe, diminui custos, dá uma liberdade, um diretor com mais dois pode fazer um filme. Ou um documentário. Essa liberdade de criação vai ser bastante, vai ser maior.

A questão técnica da imagem, tem diferença?
- Eu acho que é muito pouca a diferença. Vamos comparar com a pintura: você tem o seu filme ou o seu quadro, um vaso de flores, você pode fazer uma aquarela. Vai usar em sua casa, você usa aquarela e um papelão, peças básicas. Agora se o seu quadro vai ser um mural no palácio não sei das quantas, você não vai fazer uma aquarela, porque vai desaparecer com o tempo. Você tem que fazer algo que possa durar tanto tempo quanto os muros do palácio. Aí vai usar tudo. Usa o principal, a base mais forte por enquanto é o 35 milímetros ou então aquele filme dos astronautas - você tem o espaço assim, um negativo fantástico... Daquele negativo você pode fazer tudo, faz 16, faz Betacam, vai embora. Ele reproduz em todos os sentidos. O digital que está sendo iniciado, ele tem essa qualidade próxima do 35. Faz tudo em digital e depois “cinescopa”, porque os cinemas ainda estão funcionando com películas, as salas, evidente.

Elas têm de se adpatar também... A câmara digital fica como base só para passar depois...
- Exatamente. A pedra é a seguinte: realmente eu acho que tem um passo adiante que é voltar o cinema a ser feito por quem cria. E não o cinema ser feito por quem faz captação de dinheiro, pelo fulano de tal. E sim por quem está perto da área da criatividade: o produtor, o diretor, o escritor, o ator. Isso é muito mais fácil ter o poder da realização. O digital permite isso.

Há um tempo houve um debate no GNT, o José Mojica estava presente, e eles chegaram à conclusão que quem faz cinema é quem consegue recurso, não é mais quem cria. O senhor falou que hoje a produção de filmes está sendo muito grande, mantendo uma média anual. Mas e a qualidade?
- Quantidade nem sempre é sinônimo de qualidade.

Se o cinema está sendo feito basicamente somente por quem capta recursos, a qualidade deve estar caindo, o senhor acha isso?
- A qualidade vem com a quantidade. Em cem filmes, você vai ter condições de fazer dez filmes de qualidade. Se você fizer dez, vai ter condições de fazer um filme de qualidade. É muito difícil você encaçapar dez a dez. Essa é a experiência mundial, em todas as produções do mundo. Você tem que arriscar, em cinema ninguém sabe se o filme vai ser bom ou não. Em mil casos... “Aqui, esse é o melhor diretor, esse aqui é o melhor escritor, esse é o ator mais nhenhenhém, esse é o fotógrafo...” Junta aquilo tudo e dá um nada. (risos)

Dá um time dos sonhos do Flamengo (referência ao ataque formado nos anos 90 por Edmundo, Romário e Sávio que acabou não dando certo)...
- É, é. E há muitos casos assim, muitos, aqui no Brasil também, não vou citar, mas houve muitos casos do fracasso programado. (risos) Acho que também nem é filme para dar dinheiro, nem é filme que agrade às pessoas, que tenha sucesso de estima, né, nada (risos). Agora, de repente, aparece alguém assim, vem um jovem, junta aqui, junta ali e sai uma coisa nova. Eu acho que o espírito de invenção e pesquisa tem de permanecer e só permanece em quem está arriscando, a quem não tem nada a perder. O cara que bota dinheiro, ele está querendo segurança, ele só vai pelo que é convencional.

E aí não muda.
- Não muda, é o caso do cinema americano...

... que é a mesma coisa há muitos anos.
- Agora tem uma grande produção americana que a gente não conhece. Os independentes, a produção alternativa, é muito importante. Onde tem esse grande, tem o pequeno; onde tem o convencional, tem o transgressor. Realmente se você passar um tempo nos Estados Unidos e for estudar o cinema americano no seu todo, com todos os seus afluentes, você vai encontrar coisas muito interessantes.

Novas...
- Novas.

Mas que não chegaram aqui.
- Mas que não são consideradas comerciais. A produção lá é grande fora do esquema das majors.

Fora do esquemão, né? E o projeto do senhor de filmar a vida de Castro Alves?
- Ficou inviável, porque ficou muito caro, né. Então eu cancelei o projeto e os recursos que eu havia captado para o Castro Alves eu passei para fazer o “Casa Grande” (& Senzala, baseado no livro de Gilberto Freyre). E é muito difícil nesse momento se pensar em filme com lançamento muito grande. Era um filme que tinha um lançamento em torno de 5 milhões de dólares. Não é nada no mundo, mas no Brasil é muita grana. Para captar isso... Quando o real era equivalente, e a gente viveu essa ilusão um tempo, ainda era possível, mas depois nem pensar. Por enquanto não tenho nenhum projeto definido. Aliás, tenho muitos projetos, mas não tenho nenhuma decisão ainda.

O “Casa Grande” vai passar só na televisão ou vai passar no cinema também?
- Não sei ainda, depende. Porque o investimento para fazer uma versão para o cinema é muito grande. Nós não temos. Dependendo do sucesso na televisão, pode ser que se faça. Tenho uma proposta da televisão francesa, de fazer uma versão mais reduzida, de uma hora e meia.

E no total ele tem quanto tempo?
- Quatro horas. São quatro episódios de uma hora.

E aí se reduziria para uma hora e meia?
- Uma hora e meia. E isso aí tem um custo, tem que remontar. Se fizer em uma hora e meia para televisão já ficaria para o cinema.

Mas agora uma produção dessa de quatro horas passar para uma hora e meia seria um corte monumental.
- É complicado, difícil. Agora, ainda nem pensei como faria isso, nem sei se vou fazer. Mas é muito difícil realmente, porque são quatro episódios. O primeiro é a vida do Gilberto Freyre. Não é bem a biografia dele, mas a gênese do livro, como ele escreveu. Depois é um sobre o índio, outro sobre o português e sobre o negro. E cada episódio desse tem o professor que é o narrador e uma aluna, que acompanha. E é diferente. No primeiro é uma brasileira, um produto miscigenado brasileiro; no índio é uma negra; no português é uma índia; e no negro é uma portuguesa loira, de olhos azuis. Então para fazer uma hora e meia (risos) vai ser complicado. Não sei, realmente.

A filmagem em quatro capítulos de “Casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre, para o canal GNT, começou a ser exibido em abril de 2001. “Ele deve ser lançado com uma grande festa em Pernambuco um pouco antes de ir para o ar”, informa Nelson Pereira dos Santos. Homenageado recentemente pelo segundo Grande Prêmio Brasil de Cinema, o cineasta estava feliz com o reconhecimento ao seu trabalho (“veio na hora certa”), embora naquele mesmo dia fosse sofrer uma cirurgia por causa de catarata nas vistas, que o impediam de, por exemplo, ler as matérias dos jornais. “Só consigo ler as manchetes. Mas é até bom porque assim não leio as besteiras que saem”, diz rindo.

Queríamos saber por curiosidade, para finalizar, qual é a cena mais antiga que o senhor tem na sua memória relacionada ao cinema.
- Uma vez estava brincando sobre qual é o primeiro filme que você viu. Isso é engraçado, realmente, eu me lembro que eu disse um filme que me veio à cabeça, mas logo minha irmã disse que “não, esse filme você viu depois. O primeiro foi um assim, assim”, mas o “Cara Pálida” realmente era um western fantástico. O cara no fim do filme tem que voltar para a cidade dele e tem que atravessar um deserto e a água acaba e ele encontra um poço e tem assim: “essa água é envenenada, se você beber essa água você só vai viver mais uma hora”. Mas como ele quer voltar para encontrar a noiva dele, ele bebe a água, porque calcula que vai chegar para ver a noiva e morrer. Quando ele chega está todo mundo na igreja. E ele vai para igreja e o que é? A noiva dele está se casando com outro e ele morre. (risos) É um romântico pessimista, bem puritano. Depois eu fui recompor a história, mas o que ficou mesmo foi a coisa de beber ou não beber a água.

Essa foi a imagem que ficou.
- Essa foi a imagem. Aquele poço assim. (rindo)

Isso foi em São Paulo?
- Foi, foi em São Paulo.

O senhor ainda se lembra do cinema?
- Ih, deve ter sido o cinema que o meu pai todo domingo levava a família.

Qual era o bairro?
- Era o Brás, no cinema chamado Cinema Columbo. Acho que era um filme mudo. Devia ser um filme mudo.

Foi na década de 30 ou 40?
- Na década de 30, no começo dos anos 30. Eu nasci em 28. Quer dizer, minha mãe dizia que eu já ia ao cinema na barriga dela. (risos)


Foto de Nelson Pereira dos Santos: Júnior Aragão

Imagens: Cena do filme "Boca de Ouro" e cartazes dos filmes "Rio 40 Graus", "Vidas Secas" e "Memórias do Cárcere".