domingo, 25 de novembro de 2012

PANACÉIA CURA OS MALES MUSICAIS

"Quem canta seus males espanta". Panacéia era a deusa da cura para os gregos, e a Mostra Instrumental com seu nome foi remédio para curar todos os males musicais que assolam - e desolam - rádios e TVs. A massa adestrada por sons pasteurizados vicia diariamente seus incautos ouvidos com melodias e ritmos simplórios, adocicados e ou repetitivos para melhor empobrecer suas vidas esvaziadas.

Quem esteve na última terça-feira, dia 20, no Parque das Ruínas, em Santa Teresa, pôde fugir do óbvio e construir pedra por pedra a sonoridade musical que escolheu para seguir - e se expandir. Quem lá esteve pôde ouvir até a alegria dos passarinhos cantando ao som de sopros, teclados, cordas e percussões e sair com a alma impregnada de música da mais alta qualidade.

Sentiu o lufar e os uivos dos Inventos soprando de e para todos os lados, afastando para longe as nuvens pesadas que se imagina cobrem todo o cenário musical brasileiro da atualidade.

Viu e ouviu a correnteza fluir em rios de sangue a circular em nossas veias e artérias quando os Afluentes fizeram os pêlos do nosso corpo eriçarem nos carregando à deriva com sua força e beleza de tempos e espaços tão próximos e tão distantes. Um rio que trouxe especiarias sonoras de vários países, com muito de suas histórias e culturas.


Viu o mestre Tom Jobim abrir as portas do casarão de Laurinda Santos Lobo para Cole Porter e promover uma nova comunhão de elegância de sons e ritmos ao piano de Deborah Levy, os sopros de Dani Spielman, o "violalino" de Dhyan Toffolo e o violoncelo de Mateus Ceccato.

Teve em mãos a pedra de toque na magia do Pedra Lispe em sua incursão por campinas, ruas e vielas de asfalto, paralelepípedos e terra batida do Nordeste brasileiro.

E assistiu ao despertar de todas as suas pedras com a verdadeira algazarra musical da família Itiberê Zwarg quando a noite chegava e o público exultava o fim de um belo dia, que só se fingiu de feio quando acordou para melhor ficar. Um dia para a memória guardar.

ATENÇÃO: em dezembro, Inventos e Afluentes lançam seus primeiros CDs com shows no Espaço Sérgio Porto. O Inventos, no dia 5, e o Afluentes, no dia 21. Mais que recomendo!


Fotos: Inventos e Afluentes, na Mostra Panacéia Instrumental (Micael Hocherman)
Vídeo: "Sarau da Laurinda" (Itiberê Zwarg), com Itiberê Zwarg & Grupo.
Veja também:
Os sopros mágicos de Carlos Malta
Antúlio Madureira, mestre de obras-primas
Dois garotos
Agradecimento a Altamiro

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

UM ENCONTRO COM MARTINHO DA VILA

O Centro Cultural Carioca abriu suas octogenárias portas na segunda-feira passada, dia 12, exclusivamente para Martinho da Vila conceder uma entrevista a uma emissora de televisão para falar de uma das grandes mulheres da sua vida - provavelmente a maior delas: a Unidos de Vila Isabel. Tive a sorte de estar presente juntamente com os amigos Paulo Almeida e Alexandre Aquino, que sugeriram que nossa reunião marcada a princípio para o Grajaú, bairro onde Martinho morou por muitos anos, fosse transferida para o casarão da Rua do Teatro.


Encerrada a entrevista com o repórter Fabio Judice, o sambista e sua assessora, Rejane, se aproximaram do bar, onde Paulinho já se encontrava. Ao sabor de uma boa cerveja papeavam animadamente. Sorrateiramente, eu e Alexandre, que nos encontrávamos no canto oposto, fomos nos aproximando para ao menos ouvir a conversa. Falavam do Grajaú e do tempo em que o cantor e compositor vivera no bairro. Paulinho então perguntou ao cantor e compositor se ele já havia ido ao Samba do Trabalhador, encontro que leva o nome de uma irônica música de Darcy da Mangueira que fez sucesso com Martinho e é comandado por Moacyr Luz todas as segundas-feiras à tarde no Clube Renascença, no Andaraí.

“Fui uma vez, mas tenho evitado ir a esses lugares. Quero ir pra ouvir a música, mas toda hora chega alguém pra falar comigo e não consigo ver, nem ouvir nada. Antigamente, eu ia e quem se aproximava eu falava “sai pra lá”, “não enche o saco”, “me deixa” (contou rindo e espanando o ar como se fossem incômodos fãs). Eu fiquei conhecido logo, aí já viu. Mas hoje eu entendo o outro lado e dou atenção. O cara vai lá, me vê e é a chance que ele tem de falar comigo, de tirar uma foto, eu atendo. Mas aí não ouço, nem vejo quase nada”, contou.

A conversa animava e ótimo proseador que o poeta Martinho é prosseguiu: “O problema maior é quando chega o cara que é compositor e vê a chance de me apresentar um samba dele. Ali, na hora. Eu sou compositor, então, é complicado pegar música dos outros. Mas o cara não quer nem saber, chega e diz: “Martinho, fiz um samba que é a sua cara”. Pô, com a minha cara eu já tenho. Mas os caras não desistem”. Para dar mais vida ao que estava relatando, o sempre sorridente Martinho deu a volta por trás da pilastra entre mim e ele,  postou-se às minhas costas e começou a batucar no meu ombro direito e a cantar um samba ininteligível no meu ouvido, como se ele fosse um fã compositor daqueles que o abordam insistentemente e eu fosse ele. “Eu não ouvia o samba do cara e nem conseguia prestar atenção no que o pessoal estava cantando”.

Então eu disse que se por um lado ele entendia o outro lado, o outro lado não entendia o dele. “É, mas teve um tempo que eu adotei uma tática. Chegava no lugar fingindo que já estava doidão (e reproduziu cambaleante e com a voz pastosa como fazia), aí os caras desistiam de ficar perto. O problema é que depois de um tempo eu já não sabia se estava fingindo ou estava doidão de verdade. Aí, eu pensava: “Ih, tá na hora de ir pra casa”, contou, sempre entre risos de todos. Sim, chegara a hora de ir pra casa, com mais uma história pra contar.

Foto: Fabio Judice e Martinho da Vila no Centro Cultural Carioca (Alexandre Aquino)
Música: "Samba do Trabalhador" (Darcy da Mangueira), com Martinho da Vila.
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Entrevista: Nilze Carvalho
Chorinho
Samba matéria

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

UM BRILHANTE ESQUIZOFRÊNICO

Na tarde do último domingo aproveitei uma brecha no tempo disponível para viver uma pequena esquizofrenia. Isolei-me do mundo da bola, onde todos pareciam estar concentrados, para assistir a “Uma mente brilhante” (A beautiful mind, 2001), dirigido por Ron Howard, com Russell Crowe muito bem no papel principal. É um filme brilhante? Longe disso. Mas retrata a história verídica de um homem brilhante, o matemático e esquizofrênico John Forbes Nash.

Para alguém como eu, que não tem muita afinidade com os números, o que mais me comoveu na história desse grande homem não foi aquilo que o levou à glória, a sua profissão, a sua contribuição para a economia mundial, a sua dedicação obsessiva a uma arte que não entendo, e portanto estou impedido de admirar profundamente: a matemática. O que engrandece aos meus olhos o imenso Nash, que é bem retratado com suas virtudes e defeitos (sua arrogância na juventude é bem instrutiva para quem deseja vencer a própria), é como usou sua mente brilhante para ludibriar a esquizofrenia e evitar os eletrochoques e os remédios que o limitavam como grande estudioso de seu ofício e como homem.

Logicamente que para isso contou muito com a persistência e o amor de sua mulher, Alicia (interpretada pela bela Jennifer Connelly), que enfrentou corajosamente todos os gigantescos problemas que se avolumam com a convivência com uma pessoa dificílima por natureza e ainda mais doente. A ela, Nash dedicou merecidamente o prêmio Nobel ganho em 1994. Além disso, ele tem grandes amigos (os reais, pois os imaginários se mostraram traiçoeiros). Porém, ele só se superou porque teve vontade maior que a doença e as ignorâncias – e arrogâncias – de médicos e psicólogos, ao não se deixar vencer pelo mundo tortuoso e perigoso que sua brilhante mente criava e tornava real a seus olhos. John Forbes Nash é mais que um artista dos números, é um artista que enfrentou e recriou a própria mente.


Ilustrações: cartaz brasileiro do filme "Uma mente brilhante" (A beautiful mind, 2001) e John Forbes Nash (Getty Images).
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quarta-feira, 7 de novembro de 2012

PARIS DE NOVO NO RIO

Por qual ou quais motivos você ficaria duas horas numa fila imensa sem ao menos se importar? Poderia citar algumas razões hipotéticas e outras reais, mas fico com o que me aconteceu no sábado passado, dia 3. Tive o imenso prazer de estar acompanhado de pessoas muito queridas esperando - sob sol forte no início e vento e tempo fechado depois - a hora de poder ver a exposição Impressionismo - Paris e a Modernidade, no CCBB do Rio de Janeiro, com paciência e alegria. E não só eu. Inclusive minha afilhada Beatriz, de 5 anos, aguardou sem se impacientar um segundo sequer e também se sentiu recpompensada, tenho absoluta certeza. A sensação de sair de lá depois de tanta espera, com os pés moídos e exausto pelo cansaço físico e mental, foi não só de imenso prazer, mas de ter saído melhor do que quando entrei na primeira sala da exposição que vai até 13 de janeiro.

Difícil não se emocionar diante de alguns quadros. Especialmente os de Pierre-Auguste Renoir me arrebataram, mais até que de Monet, alguns já vistos na exposição de meados da década de 90, no Museu Nacional de Belas Artes. "Jovens meninas ao piano" (1892) particularmente  foi a obra que mais me prendeu, não queria sair de frente sem apreender todos os detalhes. Impossível. Mas quem muito quer, deseja o impossível. E ainda ver num quadro ao lado o pequeno Jean Renoir (diretor do filme  "A grande ilusão", de 1937) no colo de sua babá (e tia), como se fosse uma foto pintada por seu pai, também me comoveu.

Curioso que leio ainda nas primeiras páginas um livro sobre o designer gráfico Rogério Duarte, e um muito bom texto dele defende a arte como uso e não contemplação. Apesar dos bons argumentos que apresenta para defender a arte no desenho industrial, discordo quando critica a contemplação - guardando as devidas contextualizações -, porque a arte modifica, melhora, eleva, sacode. Diante da arte nenhum razoável espectador é passivo: todos os seus seis sentidos entram em ebulição. Foi assim que me senti sábado no CCBB.

Ilustração: "Jovens meninas ao piano", de Pierre-Auguste Renoir.

Veja também:
A brutal delicadeza de Kieslowski
Beleza e caos: arte em toda parte
O escrever
Poesia sem versos

sexta-feira, 2 de novembro de 2012