domingo, 21 de dezembro de 2014

OS MAIORES JOGOS DE TODOS OS TEMPOS 11

SUÉCIA 2 X 5 BRASIL - FINAL DA COPA DO MUNDO DE 1958

Djalma Santos, Zito, Bellini, Nilton Santos, Orlando e Gilmar;
Garrincha, Didi, Pelé, Vavá, Zagallo e Mário Américo (massagista)

Este ano aproveitei o que de melhor a internet pode oferecer para rever alguns jogos de futebol memoráveis no Youtube. Por conta própria, revi na íntegra duas partidas emblemáticas dos meus tempos de torcedor de arquibancada: Flamengo 0 x 1 Peñarol, fase semifinal da Libertadores de 1982, uma derrota até então inexplicável pra mim, e a vitória que mais me emocionou no Maracanã: Flamengo 6 x 0 Botafogo, em 1981. A trabalho, voltei ao doloroso dia 5/7/1982 para rever Brasil 2 x 3 Itália para escrever um texto sobre aquela partida para a Revista História Viva. Corrigi falhas da minha memória e confirmei algumas impressões que haviam ficado desde então. Porém, hoje resolvi assistir a um jogo que jamais havia visto e na época em que foi realizado seria impossível, pois só nasci 8 anos depois: a final da Copa do Mundo de 1958. 

Na TV já tinha visto incontáveis vezes os gols de Brasil 5 x 2 Suécia e uma ou outra jogada além e só. Todos sempre pela mesma câmera. A noção que tinha do quinto gol, marcado por Pelé, de cabeça, no finzinho da partida, era muito limitada e isso me foi confirmado hoje. Além disso, aquela jogada em que Garrincha dá uma bronca (ou finge dar) em alguém, toca de calcanhar para Djalma Santos, que levanta a bola e devolve para o ponta com extrema categoria, sempre esteve em minha memória como um lance do ataque brasileiro, mas foi realizada na saída de bola da defesa, soube hoje.

Vavá completa jogada de Garrincha para fazer o 1º gol do Brasil

Exaltar o que vem sendo decantado há 56 anos não faz o menor sentido. O que fez sentido para mim foi me surpreender com um chute espetacular de Pelé de fora da área, logo após o Brasil ter empatado o jogo, e a bola explodir na trave direita de Svensson; conhecer a qualidade de alguns jogadores da Suécia, como o ponta Hamrin e o meia Gren; me arrepiar com a obra-prima do jovem iniciante Pelé no terceiro gol, e ainda saber que houve dois pênaltis para o Brasil - um em Garrincha e outro em Vavá - na segunda etapa e ambos não terem sido assinalados pelo árbitro (que no lance de Garrincha marcou falta fora da área).

A seleção brasileira começou mal a partida, mas pôs os nervos no lugar e melhorou após levar o primeiro gol. Foi subindo de produção após empatar, fez por merecer a virada no marcador com dois gols muito semelhantes e na etapa final dominou inteiramente o adversário, vencendo com certa facilidade, com jogadas e gols espetaculares que a torcida da casa soube reconhecer e enaltecer.

Vavá, Orlando, Pelé, Gilmar e Didi comemoram o título

Num ano em que o futebol brasileiro atingiu o seu mais baixo nível, não só pelos vergonhosos 7 a 1 da Alemanha, mas pela indigência técnica e tática que seus jogadores vêm apresentando nos mais diversos gramados do país - já de muito tempo, aliás, com raríssimas exceções -, foi muito bom ter me recordado que já tivemos o melhor e mais bonito futebol do planeta.

SUÉCIA 2 X 5 BRASIL
Data: 29/06/1958
Competição: Copa do Mundo - final
Local: Estádio Rassunda (Solna) - Estocolmo
Árbitro: Maurice Alexandre Guigue (França)
Times
SUÉCIA: Svensson; Bergmark, Axbom, Börjesson e Parling; Gustavsson, Gren e Simonsson; Hamrin, Liedholm e Skoglund. Técnico: Georges Raynor.
BRASIL: Gilmar; Djalma Santos, Bellini, Orlando e Nilton Santos; Zito, Didi, Pelé e Zagallo; Garrincha e Vavá. Técnico: Vicente Feola.
Gols: Liedholm, aos 4, Vavá, aos 9 e 32 minutos do primeiro tempo; Pelé, aos 10 e aos 45, Zagallo, aos 23, Simonsson, aos 35 do segundo tempo.

Não perca a chance de ver a partida com narração do grande Jorge Cury e Oswaldo Moreira (cada um narrando o ataque de um time), comentários de Guilherme Sibemberg e comando nos estúdios do Rio de Janeiro de Antonio Cordeiro. O áudio é sueco no início do vídeo e entre os 25 e os 42 minutos da primeira etapa, devido a um problema técnico na transmissão da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Assista abaixo:


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sábado, 13 de dezembro de 2014

MUITO ALÉM DOS PRINCÍPIOS DO PRAZER DE OUVIR PEDRO SÁ MORAES

Já ouvi o CD mais de dez vezes e pensei outras tantas se deveria publicar aqui um texto para exaltar um trabalho no qual tenho envolvimento direto, por ser sócio da empresa que agencia, produz e assessora o autor. No entanto, não costumo fugir daquilo que creio profundamente, então, taí, não me furtarei de escrever sobre “Além do princípio do prazer”, álbum recém-lançado pelo cantor, guitarrista, violonista e compositor Pedro Sá Moraes, pela Delira Música. Não é trabalho para ouvidos viciados, mas para os que buscam sempre algo novo e raro e para despertar aqueles que andam meio acomodados resmungando pelos cantos, revoltados com a mediocridade – mais que isso, com o baixíssimo nível – que TVs e rádios vêm apresentando dia-a-dia ao público.

Nas nove músicas do intenso e instigante trabalho de Pedro há uma infinidade de sons e ruídos que nos trazem imagens variadas (algumas de humor, inclusive), belas melodias e quebras súbitas de ritmos que causarão estranheza. E é isso mesmo, é para tirar o ouvinte do conforto de ligar o som e deixar rolar enquanto vai se ocupando de outros afazeres. Pare tudo e o ouça com atenção. Com uma pegada roqueira, Pedro passeia por pop eletrônico, sob a batuta de Ivo Senra, mas não abandona suas raízes, que nasceram no samba da multifacetada Lapa. Estão lá marcha ("Não quer que o mundo mude"), bossa (na única com letra em inglês, "Salmo 23") e vários ritmos nordestinos, oriundos da Península Ibérica, via mouros, da África, e amalgamados aqui mesmo nesta terra tão rica e ultimamente tão maltratada musicalmente. Ele reprocessa tudo isso em seu caldeirão e, qual um bruxo, lança no ar poesias e poesias de primeira grandeza por intermédio de seu vozeirão de grande cantor que é.

Aqui vale ressaltar a qualidade das letras (verdadeiras poesias) e, nesse caso, além do próprio Pedro, é preciso citar seus parceiros Thiago Amud (nas excelentes “Alarido” e “O olho da pedra”) e Thiago Thiago de Melo (autor da brasileiríssima “Não é Água”), seus companheiros de Coletivo Chama, e João Cavalcanti (“A hora da estrela”) e Thomas Saboga (“Ela vertigem”, outra belíssima). O melhor é que ao vivo (pude constatar no Solar de Botafogo, no dia 4/12) as músicas ficam ainda melhores, especialmente pela ótima presença de palco de Pedro e também - é preciso louvar - o já citado Ivo Senra, pilotando seus teclados de mil sons, inclusive o baixo, e o grande baterista Lúcio Vieira.

Quem se interessar em ouvir as músicas de “Além do princípio do prazer”, antes de se decidir a comprar o CD (capa acima), é só clicar aqui. Como diz a letra de “Alarido”: “você vai escutar apesar e através, com maior lucidez pra separar bom, de dor; banal, de bom; tom, de cor, de som...”

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

A NECESSIDADE DO DESEJO

Fui ao quarto da minha filha desligar a televisão quando vi a imagem de um palco escuro e logo em seguida o conhecido rosto sorridente do ator Juca de Oliveira, já num cenário bem claro. Resolvi escutá-lo, e ao comentar sobre a peça Rei Lear, que encena como monólogo no Rio, ele disse algo que é de uma obviedade rodrigueana (aquela que quase ninguém enxerga): “Até o mais miserável dos mendigos tem o desejo de algo supérfluo para se reconhecer como humano. Se ele apenas supre suas necessidades básicas, não sai da condição de animal”. Lançou esta e completou com uma clara intenção política que quero eliminar daqui para me ater apenas à questão filosófica: “Marx não deve ter lido Shakespeare”.

Certo que o desejo para o ser humano (“a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”) tendo essa magnitude que Juca expressou por intermédio do bardo inglês passa a ser também uma necessidade. E passando a ser mais importante que tudo, repetidamente, significa vício. Certo também que o ser humano tendo somente as suas necessidades básicas satisfeitas, passa a abanar o rabo e a seguir seu dono. Não é difícil imaginar como os tiranos de todas as correntes ideológicas dominaram - e dominam - seus povos, direcionando seus desejos (o supérfluo citado pelo ator) aos seus objetivos mais funestos.

É uma equação até fácil de se resolver, me parece, se assemelha mesmo a uma lógica matemática. O líder supre o básico de seus comandados e, como sabe que eles depois de algum tempo não se contentarão só com o que lhes é oferecido, pois se entediarão, inventa um inimigo, um medo a ser vencido, uma guerra. E assim rastejaria a Humanidade não fossem os rebeldes, os pensadores, os sonhadores, os contestadores corajosos para pensar, sentir e agir com independência. Aqueles que pensam por si próprios, sem se deixar levar por ondas.

São eles que tiram a Humanidade da letargia, são eles que fazem o outro se levantar da cadeira com os olhos brilhando a enxergar um novo e amplo mundo à sua frente, com milhões de possibilidades. É ele, o poeta de todas as artes e ofícios (o artista no sentido mais amplo da palavra, abarcando todas as áreas do conhecimento), a verdadeira antena da raça, se assim Ezra Pound me permite citá-lo.


Ilustração: "Rei Lear e o bobo na tempestade", de William Dyce (1806-1864)
Vídeo: "Comida" (Arnaldo Antunes/ Sérgio Brito/ Marcelo Fromer), com Titãs
Veja também:
Fábrica de ídolos
A midiotização
A mídia bizarra

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

MÚSICA PRA VIAGEM: SELVA AMAZÔNICA

Começo esta nova série aqui no blog com "Selva Amazônica", música de Egberto Gismonti que me paralisou desde a primeira audição, em meados dos anos 90. Esta longa música instrumental, tocada pelo mestre num violão de 8 cordas (e mais voz, surdo e cooking bells), abre o CD "Solo", gravado em 1978, e tem me feito ao longo desses quase 20 anos, todas as vezes que a ouço, viajar não só pra selva - ou pra selvas - mas ao Norte e Nordeste do país que posso dizer praticamente desconheço (só estive em Salvador e Jauá, na Bahia, por duas semanas entre o fim de 2005 e o início de 2006). No CD, "Selva Amazônica" é tocada junto com Pau Rolou, cantada por Egberto, mas em outra versão que aqui apresento, é "só" ela mesmo, em apresentação ao vivo em Berlim com outro mestre, Naná Vasconcelos, que certamente estará aqui em breve.

O CD Solo achei numa loja de discos que não existe mais há muitos anos, na Avenida Amaral Peixoto, em Niterói. Estava na época à procura de um CD do Egberto há muito tempo, e foi este que inaugurou a pequena coleção do multi-instrumentista brasileiro que juntei a partir de então (mais 4 ou 5). Nem preciso dizer que gosto muito deste disco, que todo ele é espetacular, mas "Selva Amazônica/Pau Rolou" é que me capturou de vez. Prepare-se, siga as setas abaixo. Ótima viagem.


Vídeos:
o primeiro é a gravação original do CD Solo com belas fotos de Luciano Daini e o segundo é uma gravação de uma apresentação ao vivo de Egberto Gismonti com Naná Vasconcelos, em Berlim, postado no YouTube por Mateus Talles.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

MÃE EXALTA O AMOR EM "O FILHO DE MIL HOMENS"

Valter Hugo Mãe
Com o amor ao próximo tão fora de moda é realmente uma felicidade ler um livro que o eleva ao patamar do qual jamais deveria deixar: o da máxima grandeza. Em seu "O filho de mil homens" (Cosac & Naify), o escritor Valter Hugo Mãe, nascido em Angola, mas que vive em Portugal desde a infância, proporciona aos anacrônicos, sonhadores, utópicos ou ingênuos voltarem a acreditar que o sentimento que nos torna além-humanos ainda está vivo, mesmo que numa ficção. Porém, como já escrevi algumas vezes há mais verdades nas ficções do que no noticiário do dia-a-dia, é mais que uma esperança, bate uma certeza de que os tempos, eles mudarão.

Com notória influência de José Saramago e Gabriel García Márquez, Mãe tece seus personagens individualmente, com ternura, para ir entrelaçando-os ao longo da trama, numa narrativa envolvente, acolhedora, embora a dor, a discriminação, a ignorância, a intolerância, a ganância estejam bem presentes para nos mostrar em contraponto a beleza dos opostos - ou do oposto - disso tudo. Com o pescador Crisóstomo à frente de todos, como um condutor do mais nobre sentimento, Mãe faz jus ao sobrenome e exalta o amor maior, o verdadeiro e gigantesco e puro amor em tempos de egoísmos extremos, em plena Era do Cinismo.

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domingo, 31 de agosto de 2014

ABJETA E SUBLIME CONDIÇÃO HUMANA

Desesperançar-se e esperançar-se, eis a mola-mestra da vida. Terminei de ler o contundente livro-reportagem “Holocausto Brasileiro”, da jornalista Daniela Arbex, e vi mais uma vez como a raça humana é capaz das mais abjetas ações – e omissões – e das mais sublimes também. Mesmo tendo a plena consciência de que convive em mim (e em todos os seres humanos) o que há de pior e de melhor, não me vejo capaz de fazer nem de perto o que foi feito com as pessoas que foram internadas no antigo Colônia, manicômio da cidade mineira de Barbacena.

Nem sendo um dos muitos responsáveis diretamente pelas 60 mil mortes ocorridas naquele verdadeiro campo de concentração utilizado das mais diversas formas para degradar e reduzir a zero a condição humana (mesmo após a morte, com o lucro da venda de corpos para universidades das mais diversas partes do país). Nem enfrentando aquilo tudo com tamanha coragem, abnegação e amor para salvar alguém daquele inferno.

Daniela Arbex
Espero estar errado quanto a isto, sei que muitas vezes nos superamos, e é a partir da autocrítica, do autoconhecimento, que crescemos nas horas certas. Porém, de sã consciência, neste momento, não consigo me ver nem mesmo no lado que defenderei sempre com tanta coragem, abnegação e amor ao próximo. Não é culpa (cristã ou não) que jogo sobre meus ombros, apenas uma reflexão para tentar me entender. E crescer.

Nem como jornalista, minha profissão por 25 anos (de 1988 a 2013), creio que teria sido capaz de produzir uma reportagem tão completa e corajosa. Daniela passou a ser para mim uma referência tardia da profissão que deixei para trás. Antes dela muitos outros denunciaram o que ocorria no Colônia, localizado numa cidade com a qual tenho uma ligação familiar e por onde passei quando criança com meu falecido pai, que lá viveu quando garoto antes de vir para o Rio. Estão todos no livro, grandes homens e grandiosas mulheres.

O livro não recomendo a qualquer um ler, nem sequer observar o vasto material fotográfico de Luiz Alfredo, produzido em 1961, quando trabalhava na revista "O Cruzeiro". Somente àqueles dispostos a se defrontar e encarar de frente o quanto de desumano – e também de divino – a nossa raça encarna.

Veja também:
O ilimitado abuso do homem
Agro câncer

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

O MEIA-ARMADOR VIROU DESARMADOR (texto de 1990)

Este texto abaixo escrevi em dezembro de 1990, e não tenho certeza se ele chegou a ser publicado no Jornal dos Sports, onde trabalhava na época. Encontrei-o, numa recente arrumação em minha casa, escrito numa lauda (que para os jornalistas mais novos deve ser algo de outro mundo) do JS à máquina de escrever (outro produto de outra era) e reproduzo aqui – com pequenas correções - porque reforça e muito tudo o que escrevi aqui e nas redes sociais durante a última Copa do Mundo, no jornal Portal Grajaú, logo após a competição disputada no Brasil, e por todos estes anos em que, pese o fato de a seleção brasileira ter conquistado duas copas do mundo (1994, com dois desarmadores e mais dois meias com funções mais defensivas que ofensivas, e 2002), fomos cada vez mais nos afastando de nossas raízes, de nossas mais genuínas características. O resultado hoje todos podem ver: um futebol baseado no chutão, na truculência e na correria, com pouquíssimos bons valores revelados nos últimos 10, 15 anos.

Para situar melhor os que não conhecem, os jogadores que me deram entrevista para a matéria são Arturzinho, ex-ponta-de-lança de Fluminense, Operário-MS, Corinthians, Bangu, Vasco e Vitória, entre meados da década de 70 e o início dos 90; Deley, meia-armador que se destacou no Fluminense nos anos 80 e também atuou por Palmeiras e Botafogo, e Ailton, volante que começou no Olaria e se destacou no Flamengo em meados dos anos 80, e depois jogou por Fluminense e Grêmio. Na época da entrevista Ailton tinha sido deslocado para a lateral-direita pelo técnico Vanderlei Luxemburgo, mas depois voltou a jogar como um típico desarmador até o fim da carreira no início dos anos 2000, apesar da declaração que encerra o texto.


Até algum tempo atrás, a maioria dos grandes times brasileiros possuía, vestindo a camisa 8 de sua equipe, aquele jogador que, com sua habilidade e visão de jogo, tinha a função de armar as jogadas ofensivas. Ele que coordenava o ritmo do time, dando maior ou menor velocidade às jogadas, dependendo do momento da partida. O meia-armador saía com a bola de sua defesa já com um jogada ofensiva “arquitetada”, parecido com o armador do basquete. E como no outro esporte, que utilizava antigamente dois, mas atualmente só usa um, o futebol brasileiro de hoje eliminou o meia-armador substituindo-o pelo desarmador. Com raríssimas exceções, os grandes clubes do Brasil possuem o cabeça-de-área tradicional, desde a época do armador, e mais um jogador para destruir as jogadas ofensivas adversárias.

O desarmador pode ser chamado de Robin Hood. Se o personagem roubava dos ricos para dar aos pobres, o desarmador, com sua pouca habilidade e grande disposição física, rouba a bola dos craques – os poucos existentes – e acaba errando o passe, dando-a a outro adversário.
Tupãzinho, autor do gol do título do Corinthians, é derrubado durante a
 final do Brasileiro de 90 contra o São Paulo. Foto: Nelson Coelho (Placar)
Na final do Campeonato Brasileiro deste ano, disputada entre Corinthians e São Paulo, ambos os times tiveram Wilson Mano e Márcio, do lado alvinegro, e Bernardo e Flávio, do tricolor, os perfeitos representantes do futebol-força que invade cada vez mais o futebol brasileiro. Na Copa do Mundo da Itália, o técnico Sebastião Lazaroni escalou, além de três zagueiros, mais três desarmadores no meio-de-campo da seleção brasileira: Dunga, Alemão e Valdo (nota: Valdo na verdade era um armador com funções defensivas naquele time). O nono lugar e as péssimas apresentações da equipe comprovam que este foi pelo menos um dos erros de Lazaroni.

Porém, se o atual treinador do Fiorentina, da Itália, insistiu com desarmadores, o novo técnico da seleção, Paulo Roberto Falcão, não parece ter aprendido com os erros do passado recente. Nos cinco amistosos da seleção sob o seu comando, ele escalou no meio-de-campo nove jogadores diferentes, sendo que cinco com características de marcação. Nos dois amistosos contra o Chile, a seleção jogou com três jogadores marcadores (César Sampaio ou Moacir, Cafu e Donizete Oliveira) e Neto no meio.

Logo Falcão, que formou ao lado de Sócrates e Cerezo um trio que se revezava na armação das jogadas e encantou o mundo em 1982, na Espanha. Não vencemos, é verdade, mas esta foi a única participação brilhante de uma seleção brasileira em uma Copa do Mundo depois da conquista da Taça Jules Rimet, em 1970, no México.

O que está levando técnicos brasileiros a optar por desarmadores? Será o futebol moderno?

Para Arturzinho (foto ao lado), que já foi ponta-de-lança, e hoje atua na posição de meia-armador no Bangu, a maior escassez acontece na sua antiga posição, pois, segundo ele, não existe mais jogadores com as características de um Zico e Sócrates – quando atuava pelo Corinthians – de participar das jogadas no meio-de-campo e chegar na área para concluir. Ele acha que a escalação de um meia-armador exige do time um quarto homem para o meio-campo atual.

- Senão, o meio fica muito aberto para o adversário. Se tiver um ponta que vá à linha de fundo e saiba marcar no meio-de-campo melhor, porque se o meio estiver com poucos jogadores na hora de o adversário atacar, a defesa ficará sobrecarregada – explicou Arturzinho.

Para o meia-armador Deley (foto abaixo), que começou sua carreira no Fluminense como cabeça-de-área, e que está sem clube atualmente, acha que os argentinos quando chamam o brasileiro de “macaquito” têm razão, pois segundo o jogador, o Brasil continua imitando o futebol europeu. Como exemplo do jogo troncudo que se pratica atualmente no país, Deley citou o jogo final entre Corinthians e São Paulo, pelo Campeonato Brasileiro, quando um jogador que não quis citar o nome (Márcio, do Corinthians) “deu porrada a partida inteira e saiu de campo ganhando todos os prêmios como o melhor em campo”. Ele critica o incentivo a este tipo de jogo:

- Em 1974, a Holanda deu um show e alguns de nossos treinadores por confusão ou por acomodação acharam que o futebol moderno era parar as jogadas do adversário a qualquer custo e não ocupar todos os espaços do campo, como fez a seleção holandesa na Copa da Alemanha.

Como exemplo de time vencedor que não precisou de nenhum jogador de choque, Deley cita o Flamengo do início da década passada, quando foi de campeão estadual a mundial interclubes. Ele disse que torce sempre para os times dirigidos pelo técnico Telê Santana, que apesar de não conhecê-lo pessoalmente, é considerado pelo apoiador um treinador que faz o seu time jogar futebol. O jogador acredita que somente com esta filosofia o futebol brasileiro voltará a atrair grandes públicos aos estádios.

- Além disso estamos num processo vicioso em que o juiz não aplica a regra, o técnico não quer perder o emprego, entre outras coisas – concluiu.

Ailton (foto ao lado), do Flamengo, que sempre fez da força física e da resistência as suas maiores armas no futebol, depois de ser muito criticado como meia, agora quer se firmar como lateral-direito e pensa até em seleção brasileira. O novo técnico de seu time, Vanderlei Luxemburgo o considera um dos melhores laterais do país. O jogador acha que na lateral ele ficará mais à vontade e livre das pressões da torcida e da imprensa esportiva.

- Fico feliz com os elogios e tenho certeza que não quero mais voltar para o meio-de-campo – declarou.

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quinta-feira, 24 de julho de 2014

ARIANO SUASSUNA É ETERNO

Certa vez escrevi para consumo interno que toda praça de cada cidade brasileira deveria, por lei, apresentar semanalmente uma encenação de uma peça de Ariano Suassuna. Um sonho, uma utopia, sem dúvida, ainda mais num país que vê pouco a pouco se alastrar por seu vasto território um vácuo gigantesco de inteligência e sensibilidade. Ariano é e será eternamente um brasileiro fundamental.

Ariano Suassuna na casa em que morava, em Recife
Minha admiração por esse paraibano que se revelou para o mundo de Pernambuco me levou a ver várias montagens de peças dele, como Uma mulher vestida de sol; A farsa da boa preguiça; O santo e a porca, e A história de amor de Romeu e Julieta, esta com a saudosa Cristine Cid no elenco. Nunca vi uma encenação de O auto da compadecida no teatro, mas li o livro que tenho em casa, vi a versão feita para a TV e a edição dela para o cinema, ambas dirigidas por Guel Arraes, único diretor da televisão em quem Ariano confiava até aparecer Luiz Fernando Carvalho, que dirigiu em 2007 A pedra do reino. Gravei os episódios numa fita VHS para ver e rever, o que pretendo fazer em muito breve.

Xilogravura de Gilvan Samico
Porém, um dos primeiros contatos que tive com o universo de Ariano foi por intermédio da música, com os CDs do Quinteto Armorial que comprei em meados dos anos 90 numa ótima loja que já não existe mais há muito tempo, na Rua São José, no Centro do Rio. O Quinteto Armorial foi um dos filhos mais talentosos e famosos do Movimento de mesmo nome idealizado e concebido por Ariano Suassuna no início da década de 70 na Universidade Federal de Pernambuco que além da música envolvia outras artes, como a dança, a literatura, as artes plásticas (a xilogravura especialmente), teatro, cinema e arquitetura. Um legado cultural inestimável.

Quinteto Armorial: Antonio Nóbrega
é o da direita, com a rabeca
O Quinteto Armorial revelou ainda muito jovem o rabequeiro, cantor, compositor, dançarino, ator e “brincante” Antonio Nóbrega, parceiro de Ariano em músicas e também em várias aulas-espetáculo que o mestre apresentou pelo Brasil nos últimos anos. Do Quinteto Armorial cheguei à musica medieval, à Música Antiga da UFF, ao Anima, que me levou a outro mestre, Rubem Alves, falecido há poucos dias, e a Antulio Madureira, irmão de Antonio Madureira, maestro do Quinteto Armorial. E todos os integrantes deste círculo que tracei e muitos outros me levaram sempre de volta à nascente ariana que tão caudaloso rio fez correr por essas terras, abrindo veios, afluentes, fecundando tanta arte neste país.

Viva Ariano, toque outra vez a gaita mágica do João Grilo e desmorra novamente para impedir que este rio imenso chamado Brasil seque de vez!


Vídeo: Martelo Agalopado (Ariano Suassuna/Antonio Nóbrega), com Quinteto Armorial

sexta-feira, 18 de julho de 2014

É PRECISO RESPEITAR A DOR DO UNIVERSO

Sou verdadeiramente fascinado por coros. Não é por acaso que o "Réquiem" de Mozart me derrubou à primeira audição, nem tem tantos anos assim - pelo menos eu acho que deveria, por obrigação, ter ouvido bem antes essa obra-prima, que na verdade só teve as suas três primeiras partes finalizadas pelo gênio austríaco (Introito, Kyrie Eleison e Dies Irae), as outras ficaram por conta de seu discípulo Franz Xaver Süssmayer. 

Mas não é o "Réquiem", que já utilizei neste blog exatamente com a interpretação destes três movimentos para ilustrar a poesia "Oferenda (ou Canção de um ser dilacerado)", nem  Mozart os protagonistas deste texto, mas Eric Whitacre, que conheci há poucos minutos num vídeo do TedTalks, no Netflix.

Nesse vídeo de março de 2011, ele conta como desistiu de ser um astro pop da música para se tornar um maestro, como se apaixonou por coros e como teve a idéia de reunir vozes do mundo todo para fazer coros virtuais de algumas de suas composições. Procurei depois outros no youtube e me comovi com alguns, é um trabalho realmente impressionante e de uma beleza desmesurada. 

Porém, foi quando vi e ouvi esta apresentação ao vivo abaixo, de 2009, que me voltou à cabeça uma frase que tinha surgido em minha mente horas antes e já parecia que não retornaria mais: "É preciso respeitar a dor do universo". Cá estou, respeitando e velando por todas as dores e celebrando a intensa felicidade que uma obra de arte pode resgatar mesmo de algo aparentemente tão triste.

Isto tudo me remeteu a uma conversa via facebook que tive ontem com meu grande amigo Bruno Lobo, sobre ordem e desordem, após ler uma poesia de sua autoria. Citei Raduan Nassar ("Em toda ordem há uma semente de desordem", de Lavoura Arcaica) e posteriormente me lembrei de Chico Buarque e a sua "Eu te amo" ("Na desordem do armário embutido, meu paletó enlaça o teu vestido, e o meu sapato ainda pisa o teu"). 

A ordem e a desordem em ordens inversas, se complementando, como nesta "chuvada" que me trouxe à mente também uma queimada, onde pingos grossos castigam o chão, labaredas crepitam em galhos e folhas secas. Os opostos se fundindo, difundindo e dando vazão a tanta imaginação e criação e alegria.


Vídeo: "Cloudburst" (Eric Whitacre), com VocalEssence, St. Olaf Choir e Minnesota High School Honors Choir.

Veja também: 
Que me diz você?
A música é interdisciplinar

domingo, 13 de julho de 2014

O QUE NÃO SE PODE PERDER É A ESSÊNCIA

Sim, eu sei, na vida é preciso sempre tocar em frente. Mas é necessário que não se esqueça jamais tudo de bom construído durante a jornada e o que levamos como o bem mais precioso dentro de nós, aquilo que nos caracteriza, nos diferencia, que faz não só os outros, mas nós mesmos, nos reconhecer.

É assim também com uma nação e sua cultura. Ei, Brasil, vamos tocar em frente, sem virar as costas para o que de mais belo você criou e consolidou para o mundo. Sua cultura e sua arte são os seus bens mais preciosos, genuínos. Por que você os tem deixado para trás? Por que destruir o que se tem de melhor?

Respeite sua essência, respeite sua cultura, respeite seu futebol, sua música, sua arte. Isso é o que temos de melhor, e é onde eu me reconheço em você. E você em mim.



Vídeo: "Tocando em frente" (Almir Sater/Renato Teixeira), com Almir Sater
Veja também:
Amigo Cyro, que espetáculo!
Lições de João (a música é interdisciplinar 2)
Os sopros mágicos de Carlos Malta
Sócrates, o doutor da bola
Setenta anos do Canhotinha de Ouro
Homenagem ao teatro
A força nordestina
Antúlio Madureira, mestre de obras-primas
Reinaldo, o rei do Galo mineiro
Chorinho
Das peladas de rua às arenas

terça-feira, 8 de julho de 2014

FUTEBOL BRASILEIRO X SELEÇÃO BRASILEIRA

Tostão e Pelé em 1970
O óbvio, Nelson já dizia, é muito difícil de ser enxergado. E demorei mesmo bastante tempo para ver que gosto muito mais do futebol do que da seleção brasileira. Acrescento e explico: do futebol brasileiro que aprendi a admirar muito novo e que me fez querer assistir qualquer partida na TV ou no estádio sempre que possível. E me fez sonhar um dia me tornar um craque da bola - mas só tive alguns bons momentos em asfaltos e calçadas, campinhos de terra batida, quadras de cimento ou taco corrido, gramados mal-tratados e até em poucos "tapetinhos verdes".

Garrincha, Pelé e Djalma Santos em 1958
Antes os sentimentos se confundiam, porque na seleção jogavam os jogadores que mais admirava, tanto no meu time como no de alguns dos meus amigos e de outros que nunca conheci por morarem em outros estados. E eu os via quarta e domingo, no Maracanã ou em casa, sempre com prazer renovado. Talvez hoje goste até mais desse jeito de jogar do que do meu time, que cada vez mais se afasta de tudo que gosto de ver em campo. E por isso tenho visto cada vez menos jogos de nossas competições. Exatamente por causa deste imenso afeto que tenho por este futebol de ginga e elegância, dribles, troca de passes rápidos e lançamentos perfeitos e com efeito, inventividade, agilidade, habilidade que foram rechaçados pro mato, porque o jogo é de campeonato. Não é uma questão de jogar bem ou mal, mas de estilo, filosofia de jogo, característica, cor própria.

O time brasileiro nesta Copa, com raríssimas exceções (Neymar, já fora, e os zagueiros como as principais delas), segue esta linha da botinada na bola e no adversário e da correria desenfreada, com  um meio-de-campo duro e sem imaginação. Por isso não posso torcer por ele, como não torci em 1990, 1994 e 2010. Torcer por equipes como essas seria, guardadas as devidas proporções, como torcer para um fânque, axé, gospel, sertanejo universitário num concurso internacional de "música" só por ser defendido por alguém que nasceu no Brasil. Seria como assistir a uma briga do MMA ou UFC. Seria trair essa minha imensa afeição pelo futebol do meu país, que para mim é uma identidade, como a nossa verdadeira música, a nossa arte.

Falcão, Júnior, Sócrates e Zico em 1982
Torcer para a equipe amarela que joga feio e faz questão de achar isso bonito é torcer contra o que creio e admiro. Não é saudosismo, apenas o desejo que renasça aqui o que muitos países já estão fazendo - mesmo ainda sem grandes gênios da bola - como foi possível ver durante a Copa que acabará no próximo domingo.

No vídeo acima desconsidere a parte inicial, muito ufanista para o meu gosto, e parta direto para alguns dos mais belos gols da seleção brasileira.

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A Copa é um mundo à parte

domingo, 8 de junho de 2014

DELICADEZA ARTESANAL

Acho que já disse isso em outra postagem, mas não custa repetir, até porque a sensação só vem se renovando com o passar do tempo. Tenho tido contato direto com trabalhos e artistas maravilhosos das mais diversas áreas (Cinema, Teatro, Música, Artes Plásticas, Literatura, História, Educação, Moda...). Ontem foi mais um dia de viver um momento sublime proporcionado por este trabalho e, melhor, ao lado de minha mulher e dos companheiros e amigos da empresa do bonequinho laranja, que chamo de Xará. E outra vez isso ocorreu num espetáculo da Artesanal Cia. de Teatro.
Márcio Nascimento e o boneco, pai e filho
Depois de ter visto no ano passado O Gigante Egoísta (baseado em texto de Oscar Wilde), que rendeu posteriormente à companhia oito indicações para o Prêmio Zilka Sallaberry e três conquistas (melhor espetáculo; melhor ator, com Márcio Nascimento, e melhor figurino, de Henrique Gonçalves e Fernanda Sabino), ontem foi a vez de O Homem que Amava Caixas. Ambas abordam o universo infantil, com os habituais e belíssimos cenário e figurinos, incluindo máscaras e bonecos, mas notei uma sutil diferença que pode servir para um ótimo debate.

Enquanto O Gigante toca diretamente as crianças e a criança que existe em cada adulto, creio que O Homem das Caixas, baseado no livro de Stephen Michael King, faz os pais e os filhos que foram ou ainda são se reconhecerem e se transportarem para a delicada história que é contada no palco quase sem palavras. As crianças se encantam, claro, mas são os adultos que mais se emocionam com aquele pai generoso, mas pouco carinhoso, com seu filho tão desejoso desse afago, aconchego de braços e abraços, que demora a vir. Ninguém deve perder este espetáculo, que vai até 22 de junho, sempre aos sábados e domingos, às 17h, no Teatro Glaucio Gill, que fica bem ao lado da estação Cardeal Arcoverde do metrô, em Copacabana.
Bruno Oliveira e Marise Nogueira manuseando os bonecos
Conexões

Curiosamente na semana passada, mas não tanto por acaso, assisti ao filme "Wilde, o primeiro homem moderno", de Brian Gilbert, com primorosa atuação de Stephen Fry no papel principal. O Gigante Egoísta perpassa todo o filme, com a voz de Wilde (Fry) - ora em off, ora em on - contando a história que criou para os seus dois filhos. História esta que ele, um pai ausente, mas carinhoso, só passa para o papel quando está preso, condenado por atentado ao pudor, já nos últimos anos de vida. E como as conexões não são poucas, o ator me transportou a Zeca Baleiro, que compôs e gravou "Por onde andará Stephen Fry?", que me levou a uma entrevista de 1997 (mesmo ano do filme) entre ambos, que quem se interessar pode ler aqui: http://conteudo.potterish.com/entrevistas-stephen-fry-brazilian-music-uptodate/.

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quarta-feira, 4 de junho de 2014

PENSO, LOGO SINTO 21

Eu, a pior e a melhor pessoa que existe. Eu, a única pessoa que pode me modificar. Eu, a única pessoa que posso verdadeiramente mudar.

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Gasolina no incêndio 13
Penso, logo sinto 7
Estilhaços 4

quinta-feira, 22 de maio de 2014

domingo, 27 de abril de 2014

SICKO ($O$ SAÚDE) É UM FILME FUNDAMENTAL PARA SE ENTENDER OS EUA E O BRASIL

Ao levar às telas o filme Sicko ($O$ Saúde), o diretor Michael Moore atirou num abominável sistema de “saúde”, o de seu país, os Estados Unidos da América, e acertou no mesmo modelo adotado pouco a pouco há anos pelo Brasil. Não sei se algo mudou nos EUA desde 2007, ano da produção cinematográfica, porém vi ali o futuro do meu país e perdi meu sono (mais uma vez). Em suma, o que Moore mostra em seu documentário é que no seu país, ainda vendido aqui como a maior democracia do mundo e imposto como grande exemplo a ser seguido, quem não tem grana pra pagar um plano (seguro) de saúde (ou um emprego que o forneça) não tem nada, e quem tem, possui pouco mais que nada. O assustador foi saber que aqui, apesar das condições precárias e o insuficiente atendimento à população do nosso sistema de saúde público, ainda há opção, graças a muitos abnegados que o mantém vivo, mesmo respirando por aparelhos.

Pior que denunciar um modelo mesquinho, cruel, desumano de “saúde”, Moore nos mostra em pouco mais de duas horas um horripilante modelo de sociedade, em que o ser humano é um objeto descartável, lixo. Claro, claro, isso não é novidade no país em que se morre mais gente assassinada que em locais em declarada guerra. No entanto, quando se vê que o próprio governo e seus legisladores fomentam essa prática, não com a tradicional e criminosa omissão característica dos (des)governantes brasileiros e tantos outros pelo mundo, mas com leis e atitudes para reforçá-las e mantê-las, fica muito difícil dormir tranquilo. Ainda mais sabendo que temos por aqui aquele modelo de lá.

Este filme, que há anos tentava ver, deveria ser assistido por todos os brasileiros, sem exceção. Mesmo que o documentário só contasse mentiras, exagerasse nas denúncias, fosse de alguma forma uma irresponsável ou pretensiosa ficção, nos mostraria um espelho em que nos veríamos daqui a alguns anos. Moore foi ao Canadá, à Inglaterra, à França e finalmente ao país mais odiado pelos americanos e americanistas, Cuba, para onde levou três voluntários (heróis) que trabalharam nos destroços fumegantes das torres gêmeas derrubadas por aviões em 11 de setembro de 2001 – e onde eles finalmente conseguiram ser tratados com dignidade. E demonstrou que, tanto em países ricos, como na paupérrima ilha do ditador Fidel (hoje comandada por seu irmão, Raúl), o sistema universal e gratuito de Saúde (e de Educação, é bom que se frise) tanto é possível, como o único caminho a ser seguido por todo o mundo.

E eu, que já fui vítima de plano de saúde financeira - e do nosso (propositalmente) sucateado sistema público também -, perco o sono às vésperas de contratar outro pra mim e minha família depois de um ano sem uma carteirinha. Fico com a cabeça a girar novamente neste tema que já abordei tantas e tantas vezes, porque sei que é preciso que algo seja feito para que o pouco que resta de Saúde pública decente por aqui sobreviva - ao menos sobreviva – e que pagar todos os escorchantes impostos que me são cobrados não são suficientes para isso. Neste momento não sei o que fazer: alimento este sistema perverso ou entro nas intermináveis e cruéis filas do sistema público? Por que devo pagar duas vezes por um direito que tenho? Por enquanto, só tenho condições de recomendar este filme (o trailler vai aqui abaixo) como lição de casa para todos. 


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Brasil, um edifício que cresce sobre frágeis alicerces

quinta-feira, 24 de abril de 2014

A COPA É UM MUNDO À PARTE

Depois de muitos anos voltei a escrever para uma revista – se minha memória não falha, a última vez havia sido em 1994 para um especial da Placar. Convidado por Dirley Fernandes durante o carnaval, não perdi tempo para começar logo a escrever sobre a dolorosa Copa do Mundo de 1982 para a revista História Viva, que ele brilhantemente edita. Hoje a recebi em casa e a edição especial sobre o futebol (capa ao lado) é literalmente um show de bola.

Não sei se já publiquei isso aqui ou em outro lugar, mas me tornei jornalista, profissão que exerci regularmente de 1988 até 1º de abril do ano passado, por causa do esporte, em especial o futebol. E mais particularmente ainda, por causa das Copas do Mundo. Nunca assisti a nenhuma no local – e dificilmente estarei em algum dos estádios hiperfaturados nesta que será realizada aqui no Brasil daqui a cerca de um mês e meio -, mas participei da cobertura de cinco: 1990, no Jornal dos Sports; 1994, em O Fluminense; 1998, no Globo Online; 2002, na Lancepress, e 2010, no Globoesporte.com.

A história que conto na revista me remete aos tempos de torcedor de arquibancada, das peladas na rua de asfalto ou nos campinhos de terra. Foi uma viagem no tempo, que me fez despejar um oceano de memórias para depois pesquisar alguns fatos e ver se confirmavam as informações que o meu arquivo particular ia me mandando pôr no texto. Revi com tristeza Brasil 2 x 3 Itália, com a narração do recém-falecido Luciano do Valle, na época locutor da Globo, e posso dizer que não foi um jogo bom tecnicamente (para os altos padrões da época) e que venceu aquele que errou menos. Ou melhor, venceu quem tinha Paolo Rossi, o único a acertar tudo naquele 5 de julho de 1982, no estádio Sarrià.

Não citei os nomes, mas meu irmão, o hoje músico Léo Neiva; meu irmão de consideração Nilton Claro Júnior, auditor e contador, e os irmãos Duda (o professor de História Eduardo Barros) e Mike (o professor de Educação Física Alexandre Barros), também meus amigos, saberão se reconhecer no texto quando o lerem. Foi uma viagem no tempo que fiz sem nostalgia, apenas voltei a entender que aquela precoce eliminação decretou o fim do futebol-arte e o início da era do futebol de resultados, que teve no meu modo de entender grande influência também fora das quatro linhas, em outras áreas. Lamentável.

Tão lamentável quanto o fato de ter uma Copa como vizinha e não poder festejá-la inteiramente como um grandioso e emocionante evento, do qual tanto gosto - e acompanho inteiramente com imenso prazer desde 1974 - devido aos reincidentes e cansativos problemas brasileiros.
Charge de Dalcio Machado (http://dalciomachado.blogspot.com.br/)
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sexta-feira, 18 de abril de 2014

sábado, 1 de março de 2014

DO CAOS SÓ VIRÁ O CAOS

O movimento #naovaitercopa chega com atraso de anos e se mostra um gigantesco equívoco. Muito maior prejuízo do que os nossos conhecidos ladrões de gravata já nos causaram com seus estádios hiper-faturados o país teria se a Copa do Mundo não fosse realizada. Ao deixarmos que tudo chegasse a este ponto, não é mais hora de tentar impedir a realização do evento, ainda mais que já se sabe muito bem que os métodos serão os mais violentos e estúpidos possíveis, tanto de um lado, quanto do outro. 

Foto: Getty Images
A ocasião que se apresenta a aproximadamente cem dias do início da Copa do Mundo é uma excelente oportunidade para se mostrar ao próprio país e ao mundo – dentro e fora dos estádios – a imensa indignação com os gastos diários com supérfluos, a nossa (in)justiça, os extorsivos impostos sem retorno à população e o sucateamento ostensivo da Saúde e da Educação pública. Esta é a melhor chance também para a população que verdadeiramente estuda e trabalha para levar este lugar a se tornar um grande país - e não apenas um país grande - mostrar a sua gigante insatisfação com o povo que só quer fazer prevalecer seus desejos passando por cima de quem quer que esteja à sua frente ou montando nas costas daqueles.

É preciso pressionar sim, fortemente, os nossos políticos. Mas é bom que se saiba que eles representam fidedignamente o que somos como povo. E lá, no microcosmo dos palácios, câmaras, assembléias legislativas, senado e tribunais de (in)justiça o que vemos é mais corrupção e luta ferrenha por interesses individuais e de pequenos grupos, do que uma preocupação com a construção de um país decente. Por isso, só mudarão eles, se mudarmos nós. Protestar com ódio, quebrando tudo - e todos -, só fará o Brasil continuar a repetir seus históricos erros de violações e violências.


  Vídeo: "Ouro de tolo", de e com Raul Seixas.
Veja também:
O Brasil em chamas
Fábrica de ídolos
Brasil, um edifício que cresce sobre frágeis alicerces
O outro ovo da serpente

sábado, 22 de fevereiro de 2014

ESTILHAÇOS 11

Há muitos momentos em que acredito ser a música e a leitura tão vitais pra mim quanto a água e o ar.



Vídeo: "Khubananukh", com Kuckhermann-Metz-Nadishana trio.
Veja também: Estilhaços 4
Há muito o que fazer
Penso, logo sinto 17

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

PENSO, LOGO SINTO 20

O brasileiro lida de forma bem distinta com duas distintas senhoras, Honestidade e Democracia. Ele só lhes exalta a beleza quando lhe convém ou elas o favorecem. Do contrário, ambas não prestam.

Veja também:
Penso, logo sinto 6
Monólogos 14
Gasolina no incêndio 9

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

PENSO, LOGO SINTO 19

O estrago tem sido tão grande no país nos últimos 50 anos, que se de uma hora pra outra, em todos os cantos do país, todos os cargos públicos fossem ocupados só por gente honesta, solidária e competente, o Brasil só passaria a ser um país justo daqui a uns 30 anos.

Veja também:
A questão Em Questão 2
Conexões
Estilhaços

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

CIA DOS À DEUX, A POESIA DO CORPO

Sem uma palavra, tudo dito, com graça, emoção. Mais uma vez assisti a um espetáculo da Cia Dos à Deux e saí do teatro enriquecido. Todas as palavras não ditas são expressadas com os gestos, o corpo, de seus magníficos atores.

Dança, teatro, circo, ilusionismo e os bonecos que são personagens à parte, regidos por músicas instrumentais originais e uma iluminação de altíssima qualidade. “Irmãos de sangue” é uma peça densa, forte, envolve alegrias e tristezas, memórias de infância, encontros e despedidas, risos e choros, esgares e ternuras, castigos e carinhos, tensões e alívios, tragédias pessoais.

Como “Fragmentos do desejo”, que tive a felicidade de assistir em outubro de 2010, “Irmãos de sangue” é mais uma obra-prima desta companhia franco-brasileira, comandada por André Curti e Artur Ribeiro. A peça fica em cartaz no CCBB-RJ até 23 de fevereiro, ao preço de apenas R$ 10, o ingresso  inteiro. Depois, estará no CCBB de Belo Horizonte, de 14 de março a 6 de abril. Imperdível!
Veja também:
Amigo Cyro, que espetáculo!
Sentença de vida
O elefante e o javali 

sábado, 1 de fevereiro de 2014

AMIGO CYRO, QUE ESPETÁCULO!

Uma amiga comprou os ingressos pra mim e minha mulher com uma semana de antecedência e fui sem grandes expectativas assistir à peça "Amigo Cyro, muito te admiro", ontem, no CCBB-RJ, apesar de a figura de Cyro Monteiro sempre ter me despertado grande simpatia e gostar de muitas de suas músicas. Saí de lá extasiado - ou melhor, saímos - com a beleza e a simplicidade - a beleza da simplicidade e a simplicidade da beleza - deste que foi certamente um dos melhores espetáculos que eu já vi no teatro.

A agilidade no palco, permitida pelo talento e o entrosamento dos atores e os músicos (Levi Chaves, Lucas Porto, Luis Barcelos e Marcus Tadeu, dirigidos por Luis Barcelos), regidos por uma direção geral perfeita de André Paes Leme, fazem o tempo passar sem que se perceba. O tempo no teatro e o tempo da vida de Cyro Monteiro, contada e cantada por Claudia Ventura, Alexandre Dantas, Milton Filho e Rodrigo Alzuguir (autor do ótimo texto), que se revezam na interpretação do personagem principal e de muitos de seus amigos - e um inimigo, Mr Evans. Todos cantam (e dançam) muito bem, mas Claudia se destaca neste quesito com uma belíssima e afinada voz. No fim, dá vontade de pedir bis, mais um!

O cenário, os figurinos e a iluminação resumem a simplicidade e a beleza do talento que caracterizam o homenageado pelo seu centenário, que seria completado em maio de 2013. Ouvindo aquelas músicas e me envolvendo com uma época que o Brasil deixou muito para trás no que tinha de melhor me fez lembrar do pai desta minha amiga, Julia Evangelista. Na última vez que estivemos juntos aqui no Rio, há uns três, quatro anos, ele me disse em referência a outro musical, "Sassaricando", algo que nunca esqueci: "O Brasil perdeu a sua delicadeza". Sábio "seu" Curcino.

Que ótimo que ainda é possível resgatar, pelo menos nos palcos, na arte, essa delicadeza perdida. É, amigo Cyro, também muito te admiro!
Claudia Ventura, Rodrigo Alzuguir, Milton Filho e
Alexandre Dantas. Foto de Silvana Marques
Veja também:
Clarice Niskier, de corpo e alma
Homenagem ao teatro
Fragmentos do desejo, um belo espetáculo
O teatro e o futebol

sábado, 25 de janeiro de 2014

EM DEFESA DE DJAVAN

Há muitos anos me desinteressei pela obra de Djavan. Passei a não curtir mais as músicas que lançava e a achar que suas letras haviam caído no ramerrão do amor romântico e da sedução. Não me tocavam mais. Porém, sempre guardei respeito pelo compositor das primeiras obras, dos primeiros discos, que para mim apresentaram sempre um frescor de novidade surpreendentte.

Nos últimos tempos, nesta “Era do Já Era”, como classificou Aderbal Freire Filho, Djavan tem sido motivo de chacotas, sendo tachado de hermético, incompreensível. Incompreensível é como o brasileiro de um modo geral conseguiu se deixar embrutecer tanto - e cair no humor barato -, manter o olhar reto, desviar ou esconder o olhar torto do artista (todo poeta é caolho!), que historicamente é quem elevou e ainda eleva este país. É certo que fica muito difícil compreender poesia para quem vive a cultura do prato feito ou do “fast-food” e “self-service” de historinhas banais e pegajosas com começo, meio e fim (necessariamente nesta ordem) e ainda assim muitas vezes com imensas dificuldades para entender.

As figuras de linguagem, alma da poesia e da grande literatura universal, estão definhando por falta de bons leitores. Pelo menos cá, por essas bandas. Há exceções, claro – e ainda bem! -, mas cada vez menos pessoas prestam-lhe a devida atenção. A poesia está sumindo da Música Popular Brasileira não é de hoje. E é por causa dos ouvintes, da maioria de seus ouvintes, de viciados ouvidos. Por isso, “açaí, guardiã, zum de besouro, um imã, branca é a tez da manhã” é ridicularizada, escorraçada, por quem não consegue mais enxergar, sentir, ouvir as cores, os cheiros, os sabores, os sons pulsantes da natureza a cada linda manhã de sol.


Foto do site oficial de Djavan: www.djavan.com.br
Vìdeo: "Açaí", com e de Djavan

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

ANIMA, A MÚSICA DESPERTA

A matéria jornalística abaixo foi feita em meados de 2001 para o extinto site Papo Carioca, mas nem chegou a ser publicada. Pela primeira vez ela vai ao ar, já com o Anima em formação muito distinta daquela época, com mais três CDs lançados (Amares, de 2003, Espelho, de 2006/2007, e Donzela Guerreira, de 2010) e ainda mais premiado. Estive pessoalmente com o grupo logo após a apresentação que fizeram no iniciozinho do primeiro dia do Rock in Rio daquele ano. Por acaso, eu os vi saindo detrás do Palco "Raízes", me aproximei, me apresentei e peguei os contatos de Valeria Bittar e Luiz Fiaminghi, que são os únicos remanescentes. Meses depois, após alguns contatos por telefone, em meio à agenda cheia de shows deles, obtive os depoimentos do casal por intermédio do e-mail. 
Aos que são fãs do grupo - e os que se tornarão - finalmente aqui está um trabalho que adorei fazer e que - creio - não poderia se perder ou ficar guardado em meus arquivos:
 
     Em linhas gerais, o ANIMA se apresenta nos cuidadosos livretos que acompanham, ou melhor, envolvem os seus dois CDs (as produções independentes "Espiral do Tempo", de 1997, e "Especiarias", de 2000) como um conjunto de músicos que surgiu com a intenção de interpretar música renascentista e barroca européia, mas que com o tempo foi incorporando um cheiro popular próximo e distante. Unindo instrumentos aparentemente incompatíveis, como o imponente cravo à popularíssima e brasileiríssima - mas não menos bela - viola caipira, a alma híbrida desses músicos se mostra formada por seus sons ao mesmo tempo espantosos e belos, sofisticados e simples.
     De todos os textos encontrados nos livretos, o que melhor define a música do ANIMA talvez seja o mais subjetivo, o assinado por Rubem Alves no primeiro CD: "A música do ANIMA faz despertar uma beleza adormecida que morava no meu corpo sem que eu soubesse".
     Na estrada (em todas as possíveis e imagináveis) desde 1988, o grupo que tem sede em Campinas, mas olhos, ouvidos, coração e alma em locais e tempos tão distantes e tão próximos, passou no início deste ano pela experiência inédita de encarar um festival de rock: o Rock in Rio, em janeiro. E, mesmo com todas as dificuldades que encontraram, agradaram em cheio a um público carente de coisas novas, diferentes. Ou, como bem diz Rubem Alves, ávido por descobrir sua própria beleza adormecida por décadas de pasteurização industrial da música em rádios e TVs.
     Com atividades profissionais paralelas e apresentações do ANIMA passando por Campinas (SP), João Pessoa (PB) e Paraty (RJ) nos últimos meses, os seis componentes atuais do grupo não puderam se reunir para responder em conjunto as perguntas da entrevista feita por intermédio do correio eletrônico. Mas o casal formado pela flautista Valeria Bittar e pelo rabequeiro Luiz Henrique Fiaminghi atendeu simpaticamente ao nosso pedido para que ela fosse publicada antes que viajassem para os Estados Unidos, onde participarão de um festival na Califórnia (ver no fim da entrevista).

Ivan Vilela, José Gramani, Luiz Fiaminghi, Dalga Larrondo,
Patricia Gatti, Valeria Bittar e Isa Taube. (animamusica.art.br)

Dá para fazer uma comparação do trabalho de vocês com o idealizado e promovido por Ariano Suassuna com o Quinteto Armorial. Porém, nota-se que vocês foram além nas pesquisas musicais. Gostaria que vocês fizessem uma avaliação sobre essa afirmação (inclusive se procede!) e citassem outras referências pelo mundo afora para a música de vocês.
Com certeza, o trabalho desenvolvido pelo Armorial e Suassuna na década de 70 é uma grande referência para todos que trabalham com cultura brasileira agora, e será por muito tempo. A valorização de instrumentos típicos brasileiros, como a rabeca e a viola caipira, além da utilização da linguagem modal como um dos meios de ligação entre a Idade Média ibérica e as raízes brasileiras, que é uma das bases para a criação da sonoridade do ANIMA, já eram também utilizados conscientemente pelo Movimento Armorial. Também nos anos 60/70 estava ocorrendo na Europa um dos mais importantes movimentos de revitalização da “performance musical” no Ocidente. A música antiga tocada com os chamados “instrumentos
originais” ou “instrumentos de época”, movimento que está muito bem estudado por um de seus principais integrantes, Nikolaus Harnouncourt, em seu livro “O Discurso dos Sons”.
O ANIMA foi um grupo que se propunha, em suas origens há quinze anos enfocar a prática da música antiga por este viés. Depois de alguns anos, a partir de 1992, o grupo caminhou para outras direções, incorporando outras práticas musicais, principalmente a da música brasileira não direcionada para o grande mercado fonográfico, sempre passível de uma grande pasteurização para enquadrar-se nas regras do mercado.
Outra vertente importante do trabalho do grupo é a pesquisa da música de tradição oral e o elo  destas tradições, notadamente a brasileira e a medieval ibérica,  como fator de criação de arranjos coletivos onde a experiência musical de cada integrante do grupo é fundamental para um trabalho que se propõe realizar sem uma direção musical centralizadora.
Acreditamos que cada instrumento que é incorporado ao nosso instrumental, carrega em si mesmo um emblema da cultura de onde provém, mesclando-se com outros diferentes, muitas vezes até aparentemente antagônicos, como é o caso do cravo e da viola caipira (cultura erudita/corte versus cultura popular/praça), mas que dentro da linguagem do grupo se completam, criando um novo patamar de conexões sonoras. Se examinarmos como se foi desenvolvendo a linguagem do grupo, verificaremos que acreditar neste valor intrínseco de cada instrumento (e é claro no músico que o faz falar), foi fundamental para o estabelecimento de elos que intuitivamente os músicos estavam procurando: quando o nosso querido  Zé Gramani, integrante do grupo, falecido em 1998, trouxe a sua primeira rabeca ao grupo, imediatamente abriu-se vários pontos de conexão com diversas tradições musicais que até hoje servem de guia para nosso trabalho. Muitos destes encontros acontecem por acaso ou talvez nem tanto assim, a sincronicidade existe.

Como e onde vocês buscam essas músicas que muitas vezes ficaram esquecidas e perdidas no tempo (algumas delas passadas oralmente de geração para geração)? Vocês pretendem ampliar o espaço de composição própria nos próximos CDs?
As fontes são várias. As pesquisas de Mario de Andrade são sempre uma grande referência para nós, um exemplo. Do lado da música européia, existe muito material publicado por medievalistas nos últimos 30 anos. Cada um do grupo contribui muito também. Não somos muito de buscar tudo nos livros, mesmo porque o que nos interessa é levantar material para criar outras coisas a partir daquilo. O Ivan Vilela e agora o Paulo Freire, trouxeram, como violeiros, toda a vivência que nos aproxima da tradição popular, e esta transmissão direta foi muito importante para o grupo.


    De "Espiral do Tempo" para "Especiarias", além da perda de José Gramani - a quem o grupo dedica o segundo CD - o ANIMA trocou de violeiro, com a saída de Ivan Vilela e a entrada de Paulo Freire. A importância de Gramani para o ANIMA, como o introdutor das rabecas no lugar dos violinos, está no texto que Valeria assina em "Especiarias" em homenagem ao companheiro:
     "... O Zé Gramani era um grande violinista. Dizia que aprendeu música nas pescarias com seu pai, procurando minhocas para isca, e com sua mãe, colhendo flores para fazer arranjos.
     "Quando o Gramani começou a tocar as rabecas brasileiras no ANIMA e a compor música para cada uma delas, fomos percebendo que estava tudo lá: nas minhocas, nas flores, no riacho, nas rabecas, no zarb, nos seus contrutores (de instrumentos), no Zé, no ANIMA, em cada um de nós..."

Como vocês  superaram as mudanças ocorridas no grupo do primeiro para o segundo CD?
Cada mudança é um desafio. Considerando somente a parte musical da questão, elas contribuem para que o grupo cresça em busca de uma identidade não rigidamente associada aos músicos que participam deste ou daquele trabalho, mas que se desenvolva para uma linguagem de grupo, sem desconsiderar a individualidade de cada um, que é tão marcante ao ponto de que, cada mudança, transforme o grupo em um novo grupo. Dá pra entender? Talvez cada espetáculo seja um passo de superação, mas é preferível pensar em mutação.

Vocês foram muito prejudicados pelo som na apresentação do Rock in Rio, mas a receptividade do público foi muito boa. Que avaliação vocês fazem da participação no festival?
Num evento desta natureza, com proporções fora do comum, é previsível que alguns problemas ocorram. O que não esperávamos, no entanto, é que tantos problemas com o som ocorressem ao mesmo tempo. Retorno, PA, sem falar na qualidade do som. Por outro lado, sabemos que o som acústico do ANIMA não é fácil de ser trabalhado, especialmente em lugares abertos como foi o caso da Tenda Raízes. Pensando nisto, levamos conosco o nosso técnico de som, Murillo Correa, de Belo Horizonte, que tem vários anos de experiência em sonorização de grupos acústicos,  como  o Uakti. Como as bruxas estavam soltas naquele dia, um vento danado (que atrapalha a leitura dos microfones), muita microfonia etc tivemos que manter uma tremenda concentração, tocando praticamente sem escutar os outros companheiros, para estabelecer uma comunicação com o público, que foi extremamente receptivo, apesar dos problemas. Isto foi muito positivo para nós, já que a carreira do ANIMA se fez principalmente em teatros fechados e salas de concerto, o que é uma realidade muito diferente da que se encontra em um espaço como as Tendas do Rock in Rio.
Para nós isto é a constatação de que o público - não importa qual classificação se queira dar a ele: erudito, popular, roqueiro etc - só quer mesmo é estabelecer um canal de comunicação com o artista, e isto depende principalmente deste último, que tem que superar todas as adversidades que por ventura se imponham entre ele e seu público, desde pessoais até exclusivamente técnicas. Também foi uma grande experiência para nós, e servirá, sem dúvida, de referência para uma próxima que o grupo se apresente nesta situação.


Deu para notar na apresentação de vocês um trabalho cênico  muito integrado com as músicas (e até uma brincadeira com os roqueiros feita por Isa e Paulo na embolada "Solta o Sapo"). Isso é elaborado ou surge no momento? Algum de vocês fez teatro? Já trabalharam para alguma peça, apresentação de dança, cinema ou programa de TV? O que acham da conjunção de diversas formas de expressão artísticas?
Não, o trabalho cênico é uma forma importante para estabelecer a comunicação com o público. Para a apresentação do Rock in Rio, contamos com a ajuda da atriz e diretora de teatro Raquel Araújo, da EAD (Escola de Artes Dramáticas), da USP, São Paulo. O bom da Rachel é que ela nos faz enxergar a dramaticidade de nossos arranjos musicais e trabalha, cenicamente, o puro material sonoro se baseando na comunicação do momento de interpretação entre os músicos e entre os músicos e o público. Um dos projetos do grupo é de incorporar este trabalho e desenvolver toda a criação dos arranjos musicais também voltados para a parte cênica. É um projeto complexo, mas a pequena experiência do Rock in Rio nos mostrou que pode ser muito gratificante artisticamente falando.
Um dos trabalhos do Dalga (João Carlos Dalgalarrondo, percussionista do grupo) é com Teatro Musical e espetáculos de percussão tipo “one show men”, onde a cena serve de motivação para os quadros musicais. Ele é um gigante nisto, além de ser um grande “zarbista”.

     Os instrumentos utilizados pelos integrantes do ANIMA e a voz de Isa Taube são um capítulo a mais nessa rica história musical. Vários deles são contruídos sob encomenda especialmente para os músicos do grupo nos mais variados lugares do Brasil e do mundo. Alguns exemplos: o bendir utilizado por Dalga Larrondo é uma cópia de um modelo turco feito por António Gamez, de Madri (Espanha), em 1994; uma rabeca usada por Fiaminghi foi construída por Mestre Davino, de Cananéia (SP) e outras duas por Nelson da Rabeca, de Marechal Deodoro (AL); o cravo de Patricia Gatti foi construído por Abel Vargas, de São Paulo, em 1994, segundo Christian Zell, Hamburgo, 1741; duas violas de 10 cordas de Paulo Freire foram construídas por Vergílio Lima, de Sabará (MG); uma das flautas doce de Valeria foi construída por Helge Stiegler, da Áustria, em 1999, segundo modelo de Jacob van Eyck, no século XVI. Isso sem falar no mejuez, tradicional instrumento de sopro sírio de autor anônimo e uma kuluta tradicional da tribo Kalapalo e outra da tribo Mehinaco, ambas do Alto Xingu (MT).

O que cada um de vocês costuma ouvir em casa, quais músicos?
Eu (Fia) sempre ouvia muita música, de todo o tipo, mas principalmente a música antiga, que é a minha formação (estudei violino barroco). Atualmente, quem comanda o toca-disco é meu filho de seis anos, eu não tenho muito espaço aqui em casa. Ouvir música tem isso: ocupa espaço, e é um espaço que você necessariamente divide com as pessoas que moram com você. Eu adoro que meu filho escolha a música que ele quer ouvir e ouço junto com ele, com o maior prazer.
Eu, Valeria, mulher do Fia, ouço muito música medieval (talvez pela minha formação), Romantismo alemão em pequenos grupos de câmera - tenho dificuldade com orquestras grandes, música folclórica e popular (jazz, rock, MPB) de todas as partes do mundo (Acho que o Fia também), isto talvez com mais freqüência, antes de termos o João.

Para terminar, gostaria que vocês definissem em uma palavra o que significa a música para cada um?
Não podemos falar por seis pessoas, que no momento se encontram cada um num canto com seus trabalhos individuais a partir de quinta-feira que vem (três dias antes da apresentação no dia 24 de junho, em Paraty, como fechamento do evento que comemorou os 30 anos do grupo de teatro de bonecos “Contadores de Estórias”), mas se valer a minha opinião  (Valeria), aqui está ela: desde que escolhi ser música, me encontro com esta pergunta a todo momento. Há algum tempo atrás isto era um problema pra mim, não tinha resposta, como não tinha respostas internas para milhares de perguntas. Mas, há menos tempo ainda, muito pelo trabalho com o ANIMA começar a ter pernas próprias e dele ter nascido da relação de amizade entre nós, e principalmente porque estou mais velha - ainda bem - fazer música para mim é um caminho para me comunicar com as pessoas, e de receber esta vontade de comunicação das pessoas que nos ouvem. Mas um dia, ouvi de uma bailarina de dança Odissi (uma antiga forma de dança da Índia), que no teatro antigo da Índia, que era em forma arena, entre o público e os intérpretes havia uma roda de fogo como símbolo de transformação entre o caminho daquilo que era encenado e o público.  Existe mais coisa além disso no teatro hindu, é claro, mas essa pequena informação, ampliou minha relação com o fazer música, com o estar no palco e ser, juntamente com o público, um dos agentes de transformação e que, aquele momento, pode conter um pouco da intenção do Mistério, no sentido espiritual da palavra. E acho que essa resposta, hoje, me tranqüiliza.

     O ANIMA parte agora para uma temporada no exterior que se estenderá até o fim do ano. Neste mês de julho eles serão os representantes do Brasil no Festival de Verão da cidade de Mendoncino (Califórnia - EUA); em agosto estarão em Buenos Aires, Montevidéu e Assunção; em outubro farão uma turnê pelos Estados Unidos, passando por Washington e Carolina do Sul; e, em novembro, se apresentarão na Womex, a maior feira de produtores da chamada "world music", em Roterdã, Holanda.

O ANIMA:
Dalga Larrondo - percussão (zarb, moringa, bendir, dulcimer, triângulo, pandeiro, tambor de mina, caixa de folia, casco de búfalo, caxixi, maracá, kalimba e berimbau).
Isa Taube - voz
Luiz Fiaminghi - rabecas brasileiras
Patricia Gatti - cravo
Paulo Freire - violas brasileiras (de 10 cordas, de cocho e violaúde)
Valeria Bittar - instrumentos de sopro (flautas doce, kulutas e mejuez)
Endereço eletrônico: www.animamusica.art.br.


Atualmente, o Anima está preparando o seu sexto CD, Encantaria, e tem a seguinte formação:
Gisela Nogueira - viola de arame e violão
Luiz Fiaminghi - rabecas brasileiras e violino barroco
Marlui Miranda - voz, percussão e flautas indígenas brasileiras
Paulo Dias - percussão, organeto e cravo
Silvia Ricardino - harpa trovadoresca
Valeria Bittar - flautas-doce medieval, renascentista e barroca e flautas indígenas brasileiras.

Atual formação: Luiz Fiaminghi, Gisela Nogueira, Marlui Miranda,
Valeria Bittar, Silvia Ricardino e Paulo Dias (animamusica.art.br)

Vídeos: Je Vivroie Liement (Guillaume de Machaut) e Beira-Mar (tradição oral brasileira)
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Espantalhos
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Lições de João (A música é interdisciplinar)
Dois garotos