Ilustração criada com auxílio de IA |
Pouco a pouco, porém, senti que o
espaço que ocupava ia cada vez se estreitando mais. Havia já um rival, que ia
conquistando jovens, e os pais já não conseguiam convencer os filhos que a
tradição era mais importante que a inovação. Inovação representada por aquele
forasteiro de óculos escuros, boné, bermudas e camisas coloridas, parecendo um
turista a princípio, mas já àquela altura um vizinho insistente e barulhento,
seduzia a garotada com discurso apelativo.
Eu já não encantava tanto meus
vizinhos, muitos foram embora e me deixaram aos cuidados de poucos que
resistiram, mas não por muito tempo. E se despediram em meio à barulheira, à
fúria daquele som, um ruído difícil de afastar dos ouvidos e da cabeça. Vi da
minha janela que a tênue linha que separava a sensualidade da vulgaridade havia
se transformado num grosso e altíssimo muro que só me isolava cada vez mais. Já
não via o horizonte, só muro, infelizmente sem isolamento acústico.
A cadência se foi e a poesia foi
pisoteada para dar lugar a ferocidade, vulgaridade e palavrões. A devoção e os
rituais foram esquecidos, profanaram os santuários, sem qualquer resquício de
respeito. E com o volume cada vez mais alto, gritos ensandecidos de uma cega e
surda adoração por mais e mais gente, uma batida de fazer o chão e as paredes
racharem, fui expulso de casa. Quase rolei morro abaixo.
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No asfalto já me conheciam,
claro, e me acolheram. Não eram tantos quanto existiam antigamente na minha vizinhança, mas eram
reverentes. Sabendo de minha nova morada, alguns ex-vizinhos retornaram, vieram
me visitar. Mas já não eram tantos. Meus anfitriões foram respeitosos,
afetuosos, houve devoção e ritual. Aqui sou muito bem tratado, apesar de uns e
outros tentarem me desvirtuar e me difamar. Mas não é minha casa.
Posso ter vivido muito de ilusão, mas foi lá no morro que nasci, me desenvolvi, cresci e me fiz conhecido no mundo. Era lá que me sentia em casa e vivi os melhores dias da minha vida. Saudades da “alvorada, lá no morro, que beleza”. Hoje, quando olho pra lá daqui debaixo, choro, "me dá tristeza, sinto um grande dissabor". Porém, como bem se sabe, embora nunca mais no morro, agonizo, mas não morro. Prazer, meu nome é Samba.
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