Eis aqui um bate-papo à mesa da
eternidade em que vivem personagens dos dois maiores cronistas de futebol de
todos os tempos, com algumas participações especialíssimas que serão reveladas
ao longo desta longa e divertidíssima e emocionante conversa, recheada de
músicas que contam, cantam e tocam de primeira a História do esporte mais
popular do mundo no Brasil. Aqui, o tempo é ilimitado. João Sem Medo,
Sobrenatural de Almeida, Ceguinho Torcedor e Idiota da Objetividade marcaram um
encontro no restaurante-bar Além da Imaginação.
O garçom que os recebe e participa da
animada conversa é Zé Ary, nome recebido pelo pai, “seu Barroso”, que fora um
fanático torcedor rubro-negro, em homenagem a dois ilustres artistas que torciam
fervorosamente para o Flamengo: José Lins do Rêgo e Ary Barroso. Por isso,
todos acham que Zé Ary é flamenguista, mas quase ninguém sabe ao certo, só João
Sem Medo, pelo menos é o que se deduz. Seu time o garçom não revela, mas é,
sim, um apaixonado por futebol e música, principalmente músicas que falam de
futebol.
Veja também:
João Sem Medo chega primeiro, fazendo
seu cumprimento característico a conhecidos e desconhecidos: dois dedos à testa
com breve movimento para frente. Senta-se a uma das mesas, reservada especialmente
para eles, já com as quatro cadeiras dispostas, e pede algo para beber. Zé Ary
o serve.
Garçom: - “Seu” João Sem
Medo, é um prazer imenso receber o senhor novamente aqui no restaurante. Fique
à vontade, por favor.
João Sem Medo: - Grande José Ary
Lins Barroso! Meu camarada Zé Ary, muito obrigado. O prazer é todo meu.
Garçom: - Que isso, seu
João! O senhor é sempre muito bem-vindo. Há quanto tempo!
João Sem Medo: - Muito tempo
mesmo não voltava pra essas bandas. Mas acompanho tudo, tudinho. Então, me diga
aí, teu time ganhou hoje? (garçom faz que não com um gesto) Ih,
de novo? É, rapaz, a coisa tá mal parada. Se continuar assim, a vaca vai pro
brejo...
Garçom: – Nem me fale,
“seu” João. E a nossa seleção?
João Sem Medo: - Meu amigo,
nosso jeito de jogar futebol era único no mundo. Mas hoje em dia tem muito
jogador de cintura dura dando chutão e canelada por aí. É uma correria só.
Então, fica mais difícil pro técnico escolher. Perdemos muito da nossa ginga, o
drible. Ainda há alguns muito bons, mas já não são tantos como antes. Quase não
tem mais peladas nas ruas, em campinhos de terra batida. Eu não vejo mais isso.
Você vê?
Garçom (faz que não com a
cabeça): - Joguei muita bola na rua, “seu” João. Fui até atropelado uma
vez.
João Sem Medo: - Verdade?
Garçom: - Não foi nada
demais, apenas um susto. Mas havia mil campinhos pra jogar também...
João Sem Medo: - Hoje, onde
tem campo é quase tudo de grama sintética. E a garotada que vai pros clubes mal
consegue dominar a bola direito. A especulação imobiliária, os
condomínios construídos pra tentar isolar as classes média e alta da violência,
e também a tecnologia, expulsaram a garotada das peladas de rua. Acabaram os
campinhos de terra.
Garçom: - É verdade. No
meu tempo era difícil um garoto que não gostasse de jogar bola...
João Sem Medo: - Antigamente,
quando o garoto era meio fresco, não gostava de se sujar jogando futebol ou
brincando de qualquer outra coisa, todo arrumadinho, a gente dizia que ele
soltava pipa em frente ao ventilador e jogava bola de gude no carpete.
Garçom (rindo): - Um tempinho
atrás faziam isso tudo no computador, agora é no celular.
João Sem Medo: - Ó, Zé Ary, tô
esperando uns amigos pruma resenha boa. Eles vêm de mais longe, por isso
demoram um pouco mais.
Garçom: - Eu tô
sabendo, “seu” João! O papo vai render...
João Sem Medo: - Dizem que a
melhor coisa que existe no futebol é o gol feito pelo time que se torce. Talvez
seja. Mas eu acho que o melhor de tudo é o papo.
Garçom: - Também gosto
muito.
João Sem Medo: - O papo depois
dos jogos conserta qualquer coisa, ganha o jogo perdido, enaltece o perna de
pau, reduz o valor da estrela da partida, enfim resolve qualquer parada. E
quando o papo é meio sobre a ignorância, ainda assim é bom, porque às vezes
resulta em boas brigas. O papo é a vida do futebol. Quem é que gosta de ir aos
jogos sozinho? Ou mesmo de escutar pelo rádio (ou assistir pela TV) sem ter
alguém para comentar?
Garçom: - Por isso, o
senhor foi o comentarista que o Brasil consagrou.
João Sem Medo: - O comentário
pra mim era como um bom papo sobre futebol na mesa de um bar. Os músicos confirmaram?
Garçom: - Os músicos já
estão sabendo e prepararam um repertório especial pra acompanhar a resenha.
João Sem Medo: - Muito bom. Hoje o
repertório somos nós que vamos ditar. Quero que eles agradem à moçada que vem
aqui hoje.
Garçom: - Tá bom, “seu” João.
Ainda tem o nosso aparelho de som e o telão também pra mostrar uns vídeos. Daqui
a pouco os músicos chegam. Um deles me contou que o futebol e a música
brasileira tiveram um início muito parecido. Era música e futebol de branco,
cintura dura?
João Sem Medo: - Isso mesmo. Era
futebol pra inglês ver e jogar. A música...
Garçom: - Ah, é verdade
que o senhor é primo do Tom Jobim?
João Sem Medo: - É, por parte de
mãe.
Garçom: - Ele vinha
muito aqui. Gostava muito do “seu” Tom.
João Sem Medo: - A turma dele
tinha um papo muito intelectual, gosto mais da linguagem do povão... No início,
a música tocada no Brasil era toda da Europa: polca, valsa, erudita... Mas aí,
os negros foram entrando e deram o batuque, a ginga. O chorinho nasceu dessa
mistura. Era tão elitizada e preconceituosa a coisa que era proibido tocar
samba. Bom, fomos o último país a abolir a escravidão, você sabe. Aliás, pelo
que tenho lido, ainda existe lá na minha terra, o Rio Grande do Sul. Mas não só
lá, claro.
Veja também:
Cinema, música e futebol no YouTube
Garçom (faz que sim
com a cabeça): - Vou ligar o som enquanto os músicos não chegam.
João Sem Medo: - Que coisa,
linda, Zé Ary?
Garçom: - É o Moraes
Moreira cantando, nos tempos dos Novos Baianos. Do disco Novos Baianos Futebol
Clube. Ele prometeu vir mais tarde tocar um pouco pra nós também.
João Sem Medo (prestando atenção na música e apreciando): - Muito bom. (e cantarola baixinho): - “Só se não for brasileiro nessa hora. Só se não for...”.
FIM do Capítulo 1
(republicado neste blog no dia 3 de agosto de 2023)
Esta série é uma homenagem especial a João Saldanha e Nelson Rodrigues e também a Mario Filho e muitos dos artistas da música, da literatura, do futebol e de outras áreas da Cultura do nosso tão maltratado país.
Saiba mais clicando aqui.
Que bom reviver João Saldanha
ResponderExcluirObrigado, Vartan! Semana que vem tem mais com a chegada de Ceguinho Torcedor, Sobrenatural de Almeida e Idiota da Objetividade. Até lá. Abraços.
ExcluirObrigada querido, por fazer este jogo lúdico e nos oferecer.
ResponderExcluirEu que agradeço, AnaLu! Volte sempre, querida. Bjs.
ExcluirManeiro, edu!!! Não tinha lido ainda. Parabéns!!!
ResponderExcluirMuito obrigado. Pena que não está assinado e não sei quem comentou. Volte sempre e deide seu nome na próxima, por favor. Abs.
ExcluirObrigado, meu irmão! Abração, saudades.
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