Ceguinho Torcedor: - O Flamengo começou a ficar popular
naquela época. Tinha a festa do reco-reco, que era homem dançando com homem.
Jogador do Fluminense não ia a reco-reco. E as mocinhas passavam correndo pela
garagem do Flamengo pra não ver aquela pouca-vergonha.
Um novo grupo de músicos já está no palco e a cantora Lila
Olive, passando pela mesa dos 4 amigos, ouve a conversa e não deixa de comentar.
A diversão com a embolada “Fla-Flu”, composta por Camburé
Silva, é total em todas as mesas. Depois dos aplausos, os nossos quatro amigos
retomam a pelota e dão tratos à bola.
Sobrenatural de Almeida: - No Botafogo também tinha o
reco-reco.
Ceguinho Torcedor: - No meu Tricolor não se admitia
isso. Mas o Flamengo começou a levar o reco-reco pra rua e fazia um carnaval
fora de época que foi atraindo o povo. As noites de qualquer domingo passaram a
ser de carnaval, graças ao reco-reco do Flamengo.
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Pelé, só ele
Garçom: - Humm, a história que me contaram
foi a do time que passou a ser popular por treinar na rua, perto do povo. Não
foi isso?
Ceguinho Torcedor: - Como o Flamengo, que ficava na Rua
Paissandu, não tinha campo, os jogadores passaram a treinar no gramado do
Russel, na Glória. Aí juntava a garotada e os marmanjos pra verem os jogadores
do Flamengo treinar.
Sobrenatural de
Almeida: - O campo
ficava cheio. De gandulas. Qualquer chute fora, iam correndo uns 20 garotos
atrás da bola.
Garçom: - Então não foi só o Flamengo que
foi ficando popular, mas o próprio futebol.
João Sem Medo: - Sim, Zé Ary, e a garotada louca
pra bater uma bola.
Sobrenatural de
Almeida: - Com isso,
passaram a aparecer nos estádios as primeiras fitinhas rubro-negras nos chapéus
de palha, exclusividade dos tricolores até então.
João Sem Medo: - As fitinhas eram encomendadas da
Inglaterra, por isso eram usadas pelo torcedor da arquibancada, aquele mais
rico. O povão ficava na geral.
Ceguinho Torcedor: - Mas mesmo o torcedor da geral, nas
Laranjeiras, queria mesmo ser igual aos brancos, da elite, do clube fidalgo,
tricolor. Alguns, pretos, mulatos ou mesmo brancos pobres, procuravam se vestir
elegantemente.
Sobrenatural de
Almeida: - As moças
só ficavam na arquibancada. Muitas que antes acompanhavam suspirando os
musculosos rapazes do remo, nos dias de regatas, passaram aos poucos a se encantar
mais com os jogadores de futebol.
João Sem Medo: - Naqueles primeiros anos do futebol
no Brasil, o árbitro advertia os torcedores que fizessem barulho fora da hora.
Dava uma espécie de cartão amarelo, que não existia ainda, claro.
Ceguinho Torcedor: - Fui advertido várias vezes, várias
vezes.
João Sem Medo: - Você deve ter dado muito trabalho,
junto com o Gravatinha.
Ceguinho Torcedor: - Uma
vez quase fomos expulsos. Mas certa vez foi até interessante: existia um juiz que era um canalha em
estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um
jogo decisivo. Que fazem os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é
sempre um cordial, um ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais
equânime: — levou bola dos dois lados. Justiça se faça a ele: — roubou da
maneira mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os
22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já
estava pulando muros e galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e
alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno está correndo até hoje.
Todos
riem muito.
João Sem Medo: - Essa
coisa de juiz advertir torcedor que fizesse barulho ocorria mais pela Zona Sul,
em clubes como Fluminense e Botafogo. Lá em Bangu a coisa era diferente.
Idiota da Objetividade: - É verdade, The Bangu Athletic Club
era formado pelos ingleses da fábrica e alguns operários, brancos pobres,
mulatos e negros também. E naqueles primeiros anos do futebol no Rio de
Janeiro, no início do século XX, começou a haver aquela distinção de clube dos
grandes e dos pequenos, porque os times de Fluminense, Paysandu e Botafogo, por
exemplo, eram formados por ingleses, alemães e brasileiros abastados, quase
todos brancos.
Ceguinho Torcedor: - Os que tinham pele negra só eram
aceitos se fossem de família abastada também.
João Sem Medo: - E eles procuravam se vestir, até
pra jogar, com as melhores roupas da época.
Sobrenatural de
Almeida: - Pois em
Bangu, começou essa rivalidade que levava a torcida a não aceitar derrotas em
casa.
João Sem Medo: - O grande Mario Filho nos contou
estas histórias no clássico “O negro no futebol brasileiro”. Aliás, o Mario
Filho é o tio de vocês. Afinal era irmão de Nelson Rodrigues.
Ceguinho, Sobrenatural e Idiota
concordam.
Veja também:
Memórias da geral do Maracanã
"Contos da Bola", quem lê recomenda
Ceguinho Torcedor: - É verdade. Mario Filho foi o criador
das multidões!
Garçom: - E veja que absurdo, “seu” Ceguinho, quase tiraram o nome do Mario
Filho do Maracanã há pouco tempo. Ainda bem que recuaram.
Ceguinho Torcedor: - Seria uma injustiça colossal!
Sobrenatural de Almeida: - Se confirmassem este absurdo, o estádio que virou arena seria amaldiçoado, desmoronaria
em ruínas de tantas podridões depositadas em suas entranhas ao longo dos anos
por lorpas, pascácios, interesseiros minúsculos, e seria transformado definitivamente
num coliseu, num Parthenon brasileiro.
Fim do capítulo 4
Esta série é uma homenagem especial a João Saldanha e Nelson Rodrigues e também a Mario Filho e muitos dos artistas da música, da literatura, do futebol e de outras áreas da Cultura do nosso tão maltratado país.
Saiba mais clicando aqui.
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