Cinco de julho de 1982, a tarde
pouco avançara no Rio de Janeiro, e o árbitro israelense Abraham Klein apita o
fim do jogo e de uma era no estádio Sarriá, no início da noite ainda com sol em
Barcelona: o placar de 3 a 2 a favor da Itália decreta a precoce e
surpreendente eliminação da seleção brasileira da Copa do Mundo da Espanha. Numa
ampla casa na zona norte do Rio, incrédulos diante da TV, cinco garotos com
idades entre 12 e 17 anos se entreolham meio encabulados, sem saber o que fazer
ou dizer. Uma sensação de vazio se instaura. Dos três adultos presentes na
sala, a senhora idosa se encaminha cabisbaixa para a cozinha; a filha dela, mãe
do mais velho dos jovens, solta um palavrão, e o seu irmão resmunga algo que
ninguém ouve, talvez nem ele mesmo.
Era inacreditável, mas era a
verdade: o time comandado por Telê Santana, que escreveu poesia com a bola nos
pés de Leandro, Júnior, Falcão, Cerezo, Sócrates, Zico e Éder não tinha mais
chances de conquistar a Copa com o mesmo brilhantismo e a magia de Carlos
Alberto Torres, Clodoaldo, Gérson, Rivelino, Jairzinho, Tostão e Pelé, 12 anos
antes, no México. Após o longo silêncio, um dos meninos, de 16 anos, pega a
bola e decide: “Vamos jogar”. Foram para a rua verde-amarela, que fora toda
enfeitada e pintada por eles mesmos com a ajuda de colegas e alguns pais, para
jogar a pelada mais triste de suas vidas. Para aqueles torcedores de Flamengo,
dois irmãos, Vasco, outros dois, e Fluminense, o que morava na casa onde todos
se reuniam desde 1978, o jogo na rua era a única chance de os redimir com
imaginários gols de “Zico”, “Sócrates”, “Falcão”. Mas não havia mais como
ganhar aquela partida.
Como ocorreu após o apito final
de Klein com os jogadores brasileiros no pequeno Sarriá - que já não existe
mais desde os anos 90 -, não houve choro, desespero, só uma melancolia
incrédula. Para aqueles jovens torcedores, nem o empate servia, embora
classificasse o Brasil para as semifinais contra a Polônia. O sonho deles era
uma conquista igual à de 70, só com vitórias espetaculares, para ratificar seus
ídolos como os heróis do tetra. Principalmente dos rubro-negros, que haviam
festejado uma sequência avassaladora de taças em apenas seis meses, de novembro
de 1981 a abril de 82: Libertadores, Carioca, Mundial Interclubes e Brasileiro.
Mas a Copa, para eles e tantos outros meninos, era a hora de estar do mesmo
lado do amigo que torcia para um rival. A foto do garoto com a camisa da
seleção chorando no Sarriá, flagrada pelo fotógrafo Reginaldo Manente, do
Jornal da Tarde, vista no dia seguinte nas bancas de São Paulo - e depois no
país inteiro - era a síntese do sentimento nacional. Especialmente da garotada.
Paolo Rossi (20) sai para comemorar o terceiro gol dele e da Itália. Graziani (19), Valdir Perez, encoberto por Falcão (15) e Júnior e a bola na rede brasileira. Foto da Folha de S.Paulo/UOL |
A caminhada do time de Telê
começara em 1980, mas só daria provas definitivas de que encantaria o mundo
quando já havia obtido a vaga para a Copa, com um time ainda melhor do que o
que foi para a Espanha, por uma simples razão: Reinaldo, ídolo do Atlético-MG
que foi um dos principais responsáveis pela classificação. Ele brilhou na
partida mais dura, contra a Bolívia, na altitude de La Paz, e com um belo gol
deu a vitória ao Brasil por 2 a 1 (o outro foi de Sócrates). Na volta, a vaga
foi sacramentada com show de Zico, que fez os 3 no triunfo por 3 a 1 sobre osbolivianos, com a presença na lotadíssima arquibancada do Maracanã daqueles
cinco meninos da zona norte do Rio.
Porém, como era descrito, a
seleção de Telê começou a despertar a atenção do mundo da bola na turnê à
Europa em maio de 81. Venceu a Inglaterra, em Wembley, por 1 a 0, gol de Zico, na primeira vez que o Brasil conseguiu tal feito em solo britânico. Depois deu espetáculo
para o público francês superando o time da casa por 3 a 1, gols de Reinaldo,Zico e Sócrates. E encerrou a turnê, com 2 a 1 de virada sobre a Alemanha, em
jogo que garantiu Valdir Peres como titular do gol brasileiro. Em Stuttgart, o
goleiro do São Paulo defendeu duas cobranças de pênalti de Breitner (a primeira,
invalidada pelo árbitro). Cerezo e Júnior marcaram os gols da vitória.
Poucos meses antes da Copa,
Reinaldo ficou sem condições de seguir, e o desfalque custou caro. Telê testou o
habilidoso Careca, seu preferido, e Serginho, de estilo trombador. Careca se
mostrou tímido nos amistosos, Chulapa fez seus gols e acabou ficando com a 9
que seria de um mineiro de pernas curtas e joelhos maltratados desde os 16 anos
por zagueiros violentos. Careca se machucou poucos dias antes da estreia e Telê
chamou Roberto Dinamite, que sequer ficou no banco, algo nunca explicado.
O jogo de estreia, contra a UniãoSoviética, começou com um frango de Valdir Peres que o estigmatizou como um dos
responsáveis pela eliminação brasileira, mas ele não comprometeu mais após o
gol de Bal. No jogo tenso, dois petardos espetaculares de fora da área, um de
Sócrates e outro de Éder, venceram o ótimo Dasaev e fizeram o samba começar nas
arquibancadas do estádio Sanchez Pizjuan, em Sevilha, e nas ruas do Brasil. “Voa,
canarinho, voa”, cantavam os brasileiros a música gravada por Júnior. No
segundo jogo, mais uma vez os brasileiros saíram atrás no marcador, mas tiveram
poder de reação e muito talento para virar e golear a Escócia, por 4 a 1, combelos gols de Zico, Oscar, Éder e Falcão. Para encerrar a primeira fase, um
baile na fraca Nova Zelândia: 4 a 0, gols de Zico (dois), Falcão e Serginho.
“Voa, canarinho, voa”... Pipas e
balões brasileiros iam aos céus da Espanha levando junto a confiança dos torcedores.
As peladas comiam soltas nas ruas e campinhos de terra do Brasil, com garotos imitando
seus ídolos no jeito de jogar e tornando o jogo de bola ainda mais lúdico,
bonito e animado. Os cinco meninos faziam isso todos os dias na rua enfeitada.
Rua Antônio Basílio, na Tijuca, zona norte do Rio de Janeiro, em 1982. Foto: Agência O Globo |
A Copa da Espanha foi a primeira
com 24 seleções (antes eram 16) e a segunda fase foi o equivalente às quartas
de final, com quatro grupos de três equipes. O Brasil caiu na chave da então
campeã mundial, a Argentina abalada pela desastrosa aventura de seus generais
na Guerra das Malvinas, e a sempre perigosa Itália, então bicampeã mundial (nos
longínquos 1934 e 38) que havia passado da primeira fase sem vencer (empates
com Polônia, Peru e Camarões). Os dois times de campanhas irregulares se
enfrentaram logo, com vitória de 2 a 1 para a Itália. Nossos cinco personagens
comemoraram, não só pela rivalidade com os argentinos, mas porque o time de
Maradona, Passarella, Ardiles e Kempes era considerado mais forte. Na melhor
atuação brasileira naquele Mundial, Zico, Serginho e Júnior fizeram os gols dos
3 a 1 sobre a Argentina. O jovem Maradona ficou tão desnorteado que foi expulso
após agredir Batista.
Aqui uma
pausa para um retorno a março, três meses e meio antes. Brasil e Alemanha
Ocidental se enfrentaram no Maracanã com a presença de 150 mil pagantes, e Telê
montou uma base com cinco jogadores do Flamengo: Leandro, Júnior, Vitor
(reserva de Andrade), Adílio e Zico. Adílio deu o passe magistral para o golaço
de Júnior no fim do jogo, o Brasil venceu por 1 a 0, e o meia rubro-negro achou
que havia garantido sua vaga na Copa. O técnico da seleção, porém, após
assistir às finais do Brasileiro, vencido pelo Flamengo contra o Grêmio,
preferiu levar o cabeça de área gremista, que já havia ido à Argentina em 78, e
tinha estilo defensivo. Telê só pensava em atacar?
Após a vitória sobre a Argentina, a confiança brasileira era imensa, mas Paolo Rossi, que ficou dois anos suspenso até pouco antes da Copa por envolvimento em manipulação de resultados, esteve em tarde iluminada e abateu o canarinho em pleno vôo, marcando os gols italianos. O time que ganhasse do Brasil naquela Copa estava mesmo fadado a ser o campeão, pois somente se admitia que os brasileiros saíssem da Espanha com a taça. Então, Rossi, que se tornaria o artilheiro do Mundial, Bruno Conti, Antognoni, que faria o quarto gol se não tivesse sido invalidado pelo árbitro, Scirea e Zoff, que fez defesas milagrosas, inclusive a que impediu o gol de Oscar na última chance brasileira, cumpririam o destino vencendo a Alemanha Ocidental na final, por 3a 1, após superarem a Polônia, por 2 a 0, com dois gols do carrasco.
Rua Miguel Lemos, Copacabana, Zona Sul do Rio de Janeiro, em 1982. Foto: Agência O Globo |
Hoje, passados quase 32 anos
daquele doloroso dia, a sensação para o menino que pegou a bola para tentar
“vencer” o jogo em seus sonhos é que 5 de julho de 1982 marca o fim do
futebol-arte, de uma era em que o talento e a improvisação valiam mais que a força
física e a obediência tática. Embora a arte de jogar futebol tenha sido
traduzida por alguns indivíduos, como Maradona por exemplo, nunca mais um time
encantou tanto numa Copa quanto a Seleção de 82. Nem sequer chegou perto.
Valdir Perez, Leandro, Oscar, Falcão, Luizinho e Júnior, de pé; Nocaute Jack (massagista), Sócrates, Cerezo, Serginho, Zico e Éder, agachados |
Este texto acima é a íntegra do que enviei ao meu amigo Dirley Fernandes, então editor da revista "História Viva", para ser publicado na edição de maio de 2014. E foi a inspiração para "5 de julho de 1982", um dos 19 "Contos da Bola", à venda nas melhores lojas online do Brasil e do mundo, nas versões em papel e digital (ebook).
Revi o jogo inteiro entre Brasil e Itália para escrever este texto acima e fiz muitas pesquisas, mas passados mais 6 anos, algumas coisas eu poderia corrigir (não tenho certeza de que Reinaldo estava sem condições físicas, por exemplo), e outras tantas acrescentar. Esta é uma história que continuará no imaginário da minha geração e de nossos filhos, netos, bisnetos por muitos e muitos e muitos anos ainda.
Aquele envolvimento com a seleção brasileira não existe mais, há muitos anos de minha parte, porém, quando revivemos aqueles dias de 1982, é como se aquela relação nunca tivesse mudado um milímetro sequer. Passou, mas permanece na memória e no coração.
Revi o jogo inteiro entre Brasil e Itália para escrever este texto acima e fiz muitas pesquisas, mas passados mais 6 anos, algumas coisas eu poderia corrigir (não tenho certeza de que Reinaldo estava sem condições físicas, por exemplo), e outras tantas acrescentar. Esta é uma história que continuará no imaginário da minha geração e de nossos filhos, netos, bisnetos por muitos e muitos e muitos anos ainda.
Aquele envolvimento com a seleção brasileira não existe mais, há muitos anos de minha parte, porém, quando revivemos aqueles dias de 1982, é como se aquela relação nunca tivesse mudado um milímetro sequer. Passou, mas permanece na memória e no coração.
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Bela crônica. Parabéns!!
ResponderExcluirOntem mesmo, vi um jornalista profissional dizer na TV que essa foi a primeira vez que chorou com o futebol. Confesso que fiquei frustrado com aquela derrota inesperada, mas não cheguei a cair numa tristeza profunda a ponto de chorar.
Se me lembro bem, a única vez que chorei com o futebol foi no gol do Renato no Fla x Flu de 1995. E foi de alegria!
Não me contive porque o Flu, tecnicamente inferior, tinha a vantagem de 2 gols e levou o empate. O mais provável ali era o melhor time, com o "ataque dos sonhos", virar o jogo, mas os deuses do futebol tinham outros planos. E me surpreenderam de tal maneira que chorei sim, praticamente de joelhos, depois do apito final.
Ótimas lembranças!
Que leitura deliciosa, Edu. Realmente, sua "narração" por escrito dos jogos da seleção de 82 emocionam muito mais do que os jogos da seleção das últimas Copas .Bj grande
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