Seleção brasileira na Copa do Mundo de 1930, disputada no Uruguai |
O racismo no futebol continua sendo o tema do papo no bar “Além da Imaginação” e a bola está com o comentarista que o Brasil consagrou.
João Sem Medo: - Esse racismo entranhado em muitos
clubes brasileiros é que acabou levando o futebol ao profissionalismo na década
de 30. Os jogadores passaram a ser empregados dos clubes, tratados como tal, e isso
foi uma forma de os dirigentes evitarem a mistura deles com a parte social na sede.
Amadorismo, propriamente, já não existia há muito tempo. Com pouquíssimas
exceções de jogadores ricos, o resto já era profissional de alguma forma. E, na
verdade, foi o jeitinho brasileiro pra contornar a questão, pois os clubes que rejeitavam
o profissionalismo, no fundo não queriam mesmo era abrir as portas ao negro. E
aí caíram num dilema: ou fechavam o departamento de futebol ou aceitavam o
profissionalismo. Isso causou uma cisão violenta.
Sobrenatural de Almeida: Foi por isso que a seleção
brasileira disputou a primeira Copa do Mundo com um time enfraquecido...
João Sem Medo: - Foi. Eu assisti àquela Copa,
morava ali perto da fronteira com o Uruguai. Aliás, assisti a todas as Copas do
Mundo.
Todos os outros três (desconfiados):
- Sim, claro...
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Garçom: - Senhoras e senhores, como a conversa está nos tempos do amadorismo no
futebol brasileiro, temos música no palco para ilustrar o tema.
José (Giuseppe) Rielli (no palco, com seu acordeão): É “vero”! “La canzone” se
chama “Amadores da pelota”, de Antônio Teixeira Borges.
Garçom: - O bar Além da Imaginação tem a honra, então de apresentar José...
Giuseppe... Como devo apresentá-lo: José ou Giuseppe Rielli?
José (Giuseppe) Rielli: - Giuseppe, como “io” assinava em 1914.
Garçom: - Então, com vocês, Giuseppe Rielli!
Todos aplaudem o italiano que veio para o Brasil ainda criança no fim do século XIX. Ele agradece e se despede. João Sem Medo continua.
João Sem Medo: - Por causa dessa rixa entre amadoristas e profissionalistas, pro Uruguai, em 30, a seleção brasileira só levou um paulista, Araken Patusca, que estava brigado com o Santos, onde foi grande ídolo e artilheiro.
Idiota da Objetividade: - Araken já estaria sendo contratado...
Ceguinho Torcedor: - Estaria sendo, Idiota???
Idiota da Objetividade: - Peço desculpas. Tentando ser mais objetivo: Araken
já estaria apalavrado com o América do Rio na época. Ele é primo de Arnaldo
Patusca da Silveira, autor do primeiro gol da História do Santos Futebol Clube,
e filho do primeiro presidente do clube santista: Sizino Patusca. O gol de
Arnaldo foi feito na vitória de 2 a 1 sobre o Santos Athletic Club, em amistoso
realizado em 1912.
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João Sem Medo: - O Santos tem uma grande história antes mesmo de Pelé. Mas voltando ao que falávamos... a CBD, que deu origem à CBF, com sede no Rio, era amadorista, enquanto que uma tal de Federação Brasileira de Futebol e a Associação Paulista de Esportes Atléticos (Apea), um dos muitos nomes que a Federação Paulista de Futebol teve, eram profissionalistas. Acabou que só foram jogar a primeira Copa jogadores do Rio e o Araken, que aproveitou que o navio da seleção passou pelo porto de Santos e se juntou à delegação.
Sobrenatural de Almeida: - Mas fomos eliminados logo na primeira fase!
João Sem Medo: - Sim. Com uma derrota na estreia pra Iugoslávia, por 2 a 1,
e uma vitória de 4 a 0 sobre a fraca Bolívia.
Idiota da Objetividade: - Araken Patusca fez parte de uma
fabulosa equipe do Santos, que no Campeonato Paulista de 1927 marcou 100 gols
em 16 partidas, média recorde mundial de 6,25 por jogo. Só Araken fez 31 gols,
mas o time santista terminou em segundo lugar. O campeão foi o Palestra Itália,
que deu origem ao Palmeiras e que conquistava ali o bicampeonato paulista. Ele só
conseguiu ser campeão no Santos, em 1935, mas em grande estilo: marcou um dos
gols dos 2 a 0 sobre o Corinthians, na última partida da competição.
Garçom: - Esse Araken era bom mesmo, né?
Idiota da Objetividade: - Araken estreou no Santos, no
início da década de 20, saindo da arquibancada direto pro campo, fazendo 4 gols
no empate em 5 a 5 com o Jundiaí. Ele tinha apenas 15 anos, senhores. Araken
ainda jogou no Paulistano, no São Paulo e no Flamengo. E escreveu um livro
sobre a excursão que o Paulistano fez à Europa em 1925, quando atuou ao lado do
grande Friedenreich, o maior artilheiro de todos os tempos, com 1.329 gols,
reconhecidos pela Fifa.
João Sem Medo: - Os jornais franceses, encantados com a série de shows de
bola em gramados europeus, chamaram os brasileiros de “Os reis do futebol”.
E este é o título do livro do Araken Patuska.
Ceguinho Torcedor: - Ainda bem que depois da divisão toda,
entre amadoristas e profissionalistas, o futebol brasileiro pôde ter um pouco
de paz.
João Sem Medo: - A partir daí nosso futebol deu saltos gigantescos, projetou-se internacionalmente pela qualidade extraordinária de nossos craques, apesar do núcleo dirigente tentar sempre atrapalhar. Mas de 1930 até 35 foi o pior momento da História do futebol brasileiro. Eu não presenciei muito, mas eu sei também que o incêndio de Roma aconteceu, né?
Ceguinho Torcedor: - Verdade, meu amigo, é o óbvio ululante!
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João Sem Medo: - Foi uma fase de grande crise política e econômico-financeira, depois da crise mundial dos anos 30, no começo dos anos 30.
Ceguinho Torcedor: - A crise mundial de 29 com a quebra da Bolsa de Nova York.
João Sem Medo: - Isso mesmo. Toda a seleção brasileira... toda! Do goleiro ao ponta-esquerda, foi pra Itália, Argentina e Uruguai. E os jogos aqui, eu fazia jogo de infantil, juvenil... Foi terrível, não tinha dinheiro pra comprar material, chuteira, não tinha nada. Os campos vazios, o que era um reflexo da crise mundial. Essa crise foi ferocíssima até 35, por aí. De 30 a 35. Em 34, na Itália, ainda no meio da cisão e dessa crise toda, fomos mal de novo, eliminados logo no primeiro jogo, pela Espanha.
João Sem Medo é interrompido por aplausos direcionados ao palco. Ele mesmo só se dá conta depois e revela ao Ceguinho Torcedor o que está acontecendo.
João Sem Medo: - Meu amigo, estão no palco simplesmente Carmen Miranda e
Lamartine Babo.
Ceguinho Torcedor: - Extraordinário, épico, monumental!
João Sem Medo: - O povo aqui os reconheceu logo e já começou a aplaudir
antes mesmo de serem anunciados.
Garçom: - Nem preciso mais anunciar a próxima atração, né, Seu João? Vou deixar
a bola com eles.
Carmen Miranda: - Muito obrigada.
Lamartine Babo: - Agradeço muito. Agradecemos muito. Bom, futebol e música
sempre foram a minha cachaça, vocês sabem muito bem. Pro carnaval de 34, ano da
segunda Copa do Mundo, lançamos esta marchinha chamada “2 x 2”.
São aplaudidíssimos. Com Lamartine dando a mão a Carmen, os dois deixam o palco ovacionados e se dirigem a uma mesa para ouvirem o recomeço do papo e aguardar a vez de retornarem.
Fim do Capítulo #10
Esta série é uma homenagem especial a João Saldanha e Nelson Rodrigues e também a Mario Filho e muitos dos artistas da música, da literatura, do futebol e de outras áreas da Cultura do nosso tão maltratado país.
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Modificado e republicado em 3 de setembro de 2024
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