Mimi Sodré |
Um músico: - Ótima escolha, Zé Ary! Cesar Camargo Mariano é muito fera.
Garçom: - E o nome da música tem tudo a ver com o que estamos presenciando:
Futebol de Bar.
João Sem Medo: - Boa, Zé Ary. Muito boa!
Ao fim da música, a plateia volta todas as suas atenções aos quatro amigos, que aproveitam a deixa silenciosa para prosseguirem a conversa de onde haviam parado antes da interpretação de Gonzaguinha, Ruy e Magro de “Seo meu time não fosse o campeão”.
João Sem Medo: - Ainda nos anos 10 do século XX, as
vitórias dos grandes clubes, principalmente nos clássicos, já estavam fazendo
os torcedores vibrarem mais com a gozação após a vitória sobre um rival.
Ceguinho Torcedor: - É verdade, João. Certa vez, em
1915, encomendamos um jantar de vitória quando vencíamos o América por 3 a 0,
mas quem apareceu no restaurante no Centro da cidade foram os americanos. Eles
viraram pra 5 a 3.
Sobrenatural de
Almeida: - A partir
daí, os jantares só eram marcados quando o árbitro apitava o fim do jogo.
hahahaha
Veja também:
Ceguinho Torcedor: - O problema era contratar a banda
pra tocar. Os músicos ficavam escondidos. Se vencíamos, eles apareciam e tocavam
a noite toda. Mas se perdêssemos, a banda ficava esperando a turma do time
rival sair de frente do restaurante ou da sede pra ir embora de fininho.
Músico (do palco): - E os músicos não recebiam?
Ceguinho Torcedor: - Sim, recebiam. Eram pagos mesmo
assim.
João Sem Medo: - Pros clubes grandes da zona sul
do Rio, Fluminense, Botafogo e Flamengo, o pior era aguentar o gozo dos
torcedores do América, que era até então, o único time grande da zona norte. E
isso começou a criar rivalidades que iam pro campo, e a cordialidade já não era
mais a mesma. Houve muita invasão de campo e pancadaria, inclusive no
aristocrático estádio das Laranjeiras.
Ceguinho Torcedor: - Em 16, num Fla-Flu, Coelho Netto,
que era deputado, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e pai
de Preguinho, grande ídolo tricolor...
Idiota da Objetividade: - ... autor do primeiro gol da seleção brasileira
numa Copa do Mundo, em 1930, no Uruguai.
Ceguinho Torcedor: - Ídolo tricolor de todos os esportes, o Preguinho. Um
super-campeão, um multi-homem! Mas eu falava de seu pai, deputado, escritor, um
dos fundadores da Academia Brasileira de Letras junto com Machado de Assis...
pois bem, ele, naquele Fla-Flu de 1916, pulou o alambrado pra invadir o campo,
inconformado com o árbitro, que tinha mandado repetir uma cobrança de pênalti
pro Flamengo que Marcos Carneiro de Mendonça...
Idiota da Objetividade: - O primeiro goleiro da seleção brasileira!
Ceguinho Torcedor: - Exatamente, exatamente... Como eu falava antes de ser
interrompido pelo Idiota, o árbitro mandou repetir uma cobrança de pênalti que
Marcos Carneiro de Mendonça tinha defendido, e a elegância do Coelho Netto foi
deixada nas sociais. Com sua bengala ameaçadora foi pra cima do juiz. Aquela
ação do nobre deputado acabou incentivando a torcida tricolor a invadir o campo
também. O jogo, que era vencido pelo Flamengo por 3 a 2, foi suspenso e
disputado em outra data. O Fluminense acabou vencendo por 3 a 1.
Idiota da Objetividade: - Uma vergonha!
Sobrenatural de
Almeida: - Naquele
dia, eu já tinha feito o Fluminense perder um pênalti, cobrado pelo Riemer, pra
fora.
João Sem Medo: - Naquele tempo, a regra determinava
que se a confusão durasse pelo menos cinco minutos o jogo era suspenso.
Sobrenatural de Almeida: - O pessoal entrava na confusão de
olho no relógio se o seu time estivesse perdendo.
Idiota da Objetividade: - Como sempre, o jeitinho
brasileiro prejudicando o espetáculo.
Veja também:
João Sem Medo: - Mas nos primeiros anos do futebol
tivemos também grandes exemplos de esportividade e honestidade. Mimi Sodré, um
dos maiores nomes do escotismo brasileiro, é um deles. Mimi apontava ao árbitro
quando cometia uma infração.
Garçom: - Isso existiu no Brasil? Ah, só
antigamente mesmo.
João Sem Medo: - Mimi Sodré, campeão pelo Botafogo
em 1910 e 1912, quando também foi artilheiro do campeonato, se a bola batesse
na mão dele, não dava mais um passo sequer. Chegou a pedir ao árbitro pra
anular um gol seu, num jogo da seleção brasileira militar.
Ceguinho Torcedor: Mario Filho contou também que Mimi
Sodré tirou algumas vitórias do Botafogo com sua honestidade. Os outros
jogadores do Botafogo tentaram mudá-lo, em vão.
Garçom: - Seu Mario Filho bem podia vir aqui pra contar essas e muitas outras
histórias.
Ceguinho Torcedor: - Seria ótimo, mas infelizmente ele não poderá vir desta
vez. De alguma forma, ele está presente, pois muito do que estamos contando ele
revelou em seu clássico livro “O negro no futebol brasileiro” e em crônicas que
assinou nos jornais em que trabalhou e comandou. Recomendo que leiam.
Sobrenatural de
Almeida: - Mario
Filho conta também que quando Mimi Sodré levantava o dedo, a arquibancada vinha
abaixo, parecia gol, mas o “Menino de Ouro”, que depois virou “Velho Lobo” pros
escoteiros, era muito querido da torcida por ser honesto demais. As moças davam
gritinhos entusiasmados e todo mundo batia o pé na arquibancada. Assombroso o
Mimi, assombroso!
Alguém na plateia: - Assombroso mesmo. Já pensou hoje
um jogador pedindo ao árbitro pra anular um gol que marcou? É capaz de apanhar
da própria torcida.
Sobrenatural de Almeida: - E ainda ser expulso de campo por
desacato ao árbitro. (dá sua risada medonha) hahaha
João Sem Medo: - Aconteceu algo parecido, não tem
muito tempo, num clássico em São Paulo...
Idiota da Objetividade:
- ... Isso mesmo,
João. Foi no primeiro jogo da semifinal do Campeonato Paulista de 2017. O
zagueiro Rodrigo Caio, do São Paulo...
João Sem Medo: - Hoje no Grêmio...
Idiota da Objetividade: - Isso mesmo. Ele, naquele clássico
paulista, disse ao árbitro que Jô,
atacante do Corinthians, não havia atingido o goleiro tricolor Renan Ribeiro e
sim ele próprio. Com isso, o cartão amarelo que havia sido dado pro Jô foi
retirado pelo árbitro Luis Flávio de Oliveira.
João Sem Medo: - Alguns torcedores do São Paulo não
gostaram. Parece que o técnico, o Rogério Ceni, e alguns jogadores do time
tricolor também não.
Idiota da Objetividade: - O Corinthians, que já vencia por 1
a 0, depois fechou a vitória com mais um gol.
Veja também:
João Sem Medo: - No início da década de 10, o torcedor se manifestava
poucas vezes, era mais contido durante os jogos. Até pelos próprios árbitros,
como já dissemos. Às vezes parecia jogo de tênis. Mas com o passar do tempo,
com o futebol ficando cada vez mais popular e os estádios ficando mais cheios,
o barulho foi aumentando.
Ceguinho Torcedor: - Nos anos 20, o público cresceu ainda
mais nos estádios de futebol, e as arquibancadas começaram a ficar sem os
rostos conhecidos e passou aos poucos a receber a massa. O barulho aumentou muito
e aí eu já não estava mais tão sozinho nos gritos. Mas era um solitário, pois a
multidão é inumana, não tem cara.
Sobrenatural de Almeida: - Até música passou a ser cantada e
tocada nas arquibancadas.
O papo estava tão animado que ninguém – ou quase ninguém –
percebeu que Mussum tinha subido ao palco e aguardava a deixa pra poder se
anunciar.
Mussum: - Cacildis! Vou
aproveitar a brecha pra penetrar nessa área. Cês me permitem?
Os quatro amigos e o público concordam,
com entusiasmo.
Mussum: - Obrigadis! Cês tão falando de torcedor e música, então vou cantar uma coisinha do Dicró, que está por aí, eu acho. Ele, depois de tomar umas e outras com a gente, vem aqui pra cantar umas boas também. “O torcedor”, vamo lá, rapaziadis!
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