Popó, craque do Ypiranga-BA, em ação contra o Bahia nos anos 30 |
E o papo volta a rolar como a bola num gramado perfeito, na
mesa dos quatro amigos, para deleite da plateia presente ao Além da Imaginação.
João Sem Medo: - Aproveitando a presença do grande
Mussum, foi também na década de 20 que a bola brasileira passou a ser tratada
com mais malemolência, ginga e bailado, com a entrada de mais negros em campo. Eu
sempre falei que a África era o futuro do futebol. Os primeiros negros envergaram
a camisa do Bangu, do Andarahy, dos times de fábrica e comércio. Mas quem
ganhou a fama foi o Vasco da Gama, clube que lutou muito para ser aceito entre
os grandes do futebol carioca. Fluminense, Botafogo e Flamengo não admitiam de
forma alguma que negro vestisse suas camisas. O Vasco, como representante do
comércio de secos e molhados, que tinha contato permanente com o público em
geral, não fazia restrição alguma e surgiu como potência já em 1923. Se o clube
cruzmaltino fizesse algum tipo de discriminação levaria o comércio de seus
dirigentes à ruína. O mesmo acontecia com o Bangu, da Fábrica Bangu, e o
Andarahy, da Fábrica Confiança. Além do Sírio Libanês e os clubes suburbanos.
Sobrenatural de Almeida: - Mas João, isso não aconteceu só
no Rio, certo?
João Sem Medo: - Não, claro que não. Em São Paulo,
o Palmeiras, time dos italianos, resistia. Era Palestra Itália ainda. O
Paulistano, do Jardim Paulista, preferiu fechar o departamento de futebol a ter
de aceitar preto no time. No Sul, o Grêmio era intransigente. O Inter não,
tanto que o símbolo do time é o saci pererê. O mascote colorado só surgiu na
década de 40, mas carrega a história do time gaúcho representante das camadas
populares desde a fundação, em 1909.
Ceguinho Torcedor: - Ah, mas você é gremista de origem,
João.
João Sem Medo: - Fui, mas essa é uma outra história,
vem de uma rivalidade com meu irmão, Aristides, este sim, torcedor colorado.
Quando a gente ia jogar bola ele dizia logo que era Inter, então eu era Grêmio.
Ceguinho Torcedor: - Essa rivalidade entre Grêmio e Inter é talvez a mais feroz
do país.
João Sem Medo: - Acredito que seja sim, Ceguinho.
Garçom: - Então vamos aproveitar pra chamar o Teixeirinha, torcedor colorado,
pra cantar o “Desafio do Grenal”.
Teixeirinha vai ao palco, aplaudido pela plateia.
Teixeirinha: - Obrigado, minha gente. Mas só um esclarecimento, eu sou gremista de coração. Canto como colorado na música que vou apresentar aqui, mas sempre torci pro Grêmio. Bom, feito o esclarecimento, vou pedir permissão pra fazer o dueto com a gravação da minha grande amiga Mary Terezinha, que ainda vive muito bem e logicamente não tem permissão pra vir aqui pessoalmente. É o “Desafio do Grenal”!
Todos aplaudem.
Teixeirinha: - Peço desculpas pelo “macacada” na letra em referência aos
colorados. Eram outros tempos quando fiz a música, não quis ofender. Ela foi
gravada originalmente no meu disco “Dorme Angelita”, lançado em 1968.
Garçom: - Muito obrigado, Teixeirinha.
Veja também:
João Sem Medo retoma o tema, como quem arma um contra-ataque
veloz.
João Sem Medo: - A discriminação contra os negros
existia no futebol de outros estados também. No Paraná, o Atlético e o Coritiba
não aceitavam. Em Minas, Atlético e América; na Bahia, o Baiano Tênis, que fez
o mesmo que o Paulistano, abandonou o futebol pra não ter de aceitar negro no
time. Lá, o Vitória, primeiro clube a ser fundado só por brasileiros, começou
em 1899 como clube de críquete. Depois, com a revolta dos baianos por só
poderem, no máximo, devolver a bola pros ingleses nas partidas daquele esporte
chatíssimo, o Rubro-Negro de Salvador começou a jogar o futebol já nos
primeiros anos do século vinte.
Ceguinho Torcedor: - Naquela época o futebol já era
muito popular na Bahia. Os jogos recebiam grandes plateias, já ao som de bandas
de música e fanfarras. Lá era permitido.
Alguém na plateia: - A Bahia sempre foi uma festa!
Riso geral.
João Sem Medo: - Nas décadas de 20 e 30 o grande
astro baiano era o negro Popó, chamado de “O Craque do Povo” e “O Terrível”.
Ele jogou no Ypiranga e no Botafogo da Bahia e foi o principal jogador da
seleção baiana campeã brasileira em 34, acabando com a hegemonia de Rio de
Janeiro e São Paulo. Teve como grande companheiro um soldado da PM conhecido
como Dois Lados.
Sobrenatural de Almeida: - Dois Lados?
João Sem Medo: - É, ele ganhou o apelido por ser
magro demais.
Sobrenatural de
Almeida: - Ele só
tinha dois lados. Assombroso.
Garçom: - Foi feito em 2D.hahaha
A plateia ri também.
Idiota da Objetividade: - Dois Lados foi o herói do título
baiano de 1920. Ele fez os dois gols da vitória de 2 a 1 sobre o Fluminense de
Salvador e na comemoração teve seu pé direito banhado em champanhe.
João Sem Medo: - Mas depois quase ficou na miséria.
A sorte é que fizeram uma campanha para ajudá-lo e ele conseguiu viver
dignamente depois.
Veja também:
Ceguinho Torcedor: - O Ypiranga era um time abençoado.
Além de ter Dois Lados e Popó, era o time de coração da Irmã Dulce, que era
apaixonada por futebol.
João Sem Medo: - E também do meu camarada Jorge Amado. O nome do meu livro
“Subterrâneos do Futebol”, lançado originalmente no início dos anos 60, é uma
homenagem ao “Subterrâneos da liberdade”. Depois relançaram com o título
“Histórias do futebol”. Não gostei, mas isso é outra história. Falávamos do
Ypiranga...
Idiota da Objetividade: - Irmã Dulce, falecida em 1992 aos
77 anos, fez inúmeras obras de caridade na Bahia, foi beatificada em 2011 e se
tornou a primeira santa católica do Brasil, em 2019, canonizada pelo papa
Francisco com o título de Santa Dulce dos Pobres.
João Sem Medo: - No livro “Bahia de Todos os Santos”, Jorge Amado descreve
os feitos do Popó no seu Ypiranga do coração. Inclusive, em
Salvador, no bairro Engenho Velho da Federação, tem uma rua chamada Apolinário
Santana, seu nome verdadeiro, em homenagem a ele.
Garçom: - Já que o assunto é o grande Ypiranga de Salvador, vou pôr aqui no nosso aparelho de som, um dos hinos do clube, o mais popular, de autoria de Valter Queiróz.
Ceguinho Torcedor: - Em 1923, o meu Fluminense foi
enfrentar o Ypiranga na Bahia e levou de 5 a 4. As manchetes berraram: “Popó 5
a 4 no Tricolor”. Ele fez todos os gols do time baiano. Depois disso, durante
um bom tempo, toda vez que algum jogador se destacava contra o meu clube era
logo apelidado de Popó.
Músico: - Uma quadrinha junina naquela época
cantava: “Chuta, chuta, Popó chuta/Chuta por
favor/Mela, mela, mela, mela/Mela e lá vai gol”. Melar significava driblar.
João
Sem Medo: - Ele infelizmente morreu na miséria, pedindo esmolas, no início da década de 50 em frente ao
estádio da Fonte Nova, recém-inaugurado na época. O Ypiranga era conhecido como
o Time do Povo porque aceitava negros no seu time, um deles era o Popó. O
Ypiranga só perdeu esse status quando surgiu o Bahia, em 31. Naquele tempo a
questão do amadorismo e do profissionalismo estava dividindo o futebol no país.
E o Vitória, que privilegiava os esportes olímpicos, acabou vendo o futuro
arquirrival crescer muito e conquistar muitos títulos baianos.
Veja também:
Idiota da Objetividade: - Em 2022 conquistou o seu 50º título estadual.
Enquanto o Vitória tinha 29.
João Sem Medo: - E o primeiro título do Bahia foi logo em 1931 e, com o
tempo, se tornou o maior detentor de títulos do estado. Ganhou até a primeira
Taça Brasil, em 59, numa final contra o grande Santos. Não é pouca coisa.
Ceguinho Torcedor: - Não mesmo.
Fim do Capítulo 7
Republicado em 21 de agosto de 2024
Esta série é uma homenagem especial a João Saldanha e Nelson Rodrigues e também a Mario Filho e muitos dos artistas da música, da literatura, do futebol e de outras áreas da Cultura do nosso tão maltratado país.
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Belas efemérides do futebol!!
ResponderExcluirE ainda há muitas e muitas histórias pra contar, meu amigo. Obrigado mais uma vez pelo apoio de sempre. Abração, volte sempre.
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