Nem alegre, nem triste: poeta. Aprendendo a amar, nunca chegando na hora marcada.
domingo, 27 de fevereiro de 2022
OLHARES ALHURES - FOTOS #79: AVES NO POSTE
sábado, 26 de fevereiro de 2022
OLHARES ALHURES - FOTOS #78: BRINQUEDOS DE FERRO
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quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022
UMA COISA JOGADA COM MÚSICA - CAPÍTULO #4
Ceguinho Torcedor: - O Flamengo começou a ficar popular
naquela época. Tinha a festa do reco-reco, que era homem dançando com homem.
Jogador do Fluminense não ia a reco-reco. E as mocinhas passavam correndo pela
garagem do Flamengo pra não ver aquela pouca-vergonha.
Um novo grupo de músicos já está no palco e a cantora Lila
Olive, passando pela mesa dos 4 amigos, ouve a conversa e não deixa de comentar.
A diversão com a embolada “Fla-Flu”, composta por Camburé
Silva, é total em todas as mesas. Depois dos aplausos, os nossos quatro amigos
retomam a pelota e dão tratos à bola.
Sobrenatural de Almeida: - No Botafogo também tinha o
reco-reco.
Ceguinho Torcedor: - No meu Tricolor não se admitia
isso. Mas o Flamengo começou a levar o reco-reco pra rua e fazia um carnaval
fora de época que foi atraindo o povo. As noites de qualquer domingo passaram a
ser de carnaval, graças ao reco-reco do Flamengo.
Veja também:
Os maiores jogos de todos os tempos 11
Pelé, só ele
Garçom: - Humm, a história que me contaram
foi a do time que passou a ser popular por treinar na rua, perto do povo. Não
foi isso?
Ceguinho Torcedor: - Como o Flamengo, que ficava na Rua
Paissandu, não tinha campo, os jogadores passaram a treinar no gramado do
Russel, na Glória. Aí juntava a garotada e os marmanjos pra verem os jogadores
do Flamengo treinar.
Sobrenatural de
Almeida: - O campo
ficava cheio. De gandulas. Qualquer chute fora, iam correndo uns 20 garotos
atrás da bola.
Garçom: - Então não foi só o Flamengo que
foi ficando popular, mas o próprio futebol.
João Sem Medo: - Sim, Zé Ary, e a garotada louca
pra bater uma bola.
Sobrenatural de
Almeida: - Com isso,
passaram a aparecer nos estádios as primeiras fitinhas rubro-negras nos chapéus
de palha, exclusividade dos tricolores até então.
João Sem Medo: - As fitinhas eram encomendadas da
Inglaterra, por isso eram usadas pelo torcedor da arquibancada, aquele mais
rico. O povão ficava na geral.
Ceguinho Torcedor: - Mas mesmo o torcedor da geral, nas
Laranjeiras, queria mesmo ser igual aos brancos, da elite, do clube fidalgo,
tricolor. Alguns, pretos, mulatos ou mesmo brancos pobres, procuravam se vestir
elegantemente.
Sobrenatural de
Almeida: - As moças
só ficavam na arquibancada. Muitas que antes acompanhavam suspirando os
musculosos rapazes do remo, nos dias de regatas, passaram aos poucos a se encantar
mais com os jogadores de futebol.
João Sem Medo: - Naqueles primeiros anos do futebol
no Brasil, o árbitro advertia os torcedores que fizessem barulho fora da hora.
Dava uma espécie de cartão amarelo, que não existia ainda, claro.
Ceguinho Torcedor: - Fui advertido várias vezes, várias
vezes.
João Sem Medo: - Você deve ter dado muito trabalho,
junto com o Gravatinha.
Ceguinho Torcedor: - Uma
vez quase fomos expulsos. Mas certa vez foi até interessante: existia um juiz que era um canalha em
estado de pureza, de graça, de autenticidade. Um domingo, ele vai apitar um
jogo decisivo. Que fazem os adversários? Tentam suborná-lo. Ora, o canalha é
sempre um cordial, um ameno, um amorável. E o homem optou pela solução mais
equânime: — levou bola dos dois lados. Justiça se faça a ele: — roubou da
maneira mais desenfreada e imparcial os dois quadros. Ao soar o apito final, os
22 jogadores partiram para cima do ladrão. Mas o gângster já se antecipara, já
estava pulando muros e galinheiros. Era uma figurinha elástica, acrobática e
alada. Isto foi em 1917. O juiz gatuno está correndo até hoje.
Todos
riem muito.
João Sem Medo: - Essa
coisa de juiz advertir torcedor que fizesse barulho ocorria mais pela Zona Sul,
em clubes como Fluminense e Botafogo. Lá em Bangu a coisa era diferente.
Idiota da Objetividade: - É verdade, The Bangu Athletic Club
era formado pelos ingleses da fábrica e alguns operários, brancos pobres,
mulatos e negros também. E naqueles primeiros anos do futebol no Rio de
Janeiro, no início do século XX, começou a haver aquela distinção de clube dos
grandes e dos pequenos, porque os times de Fluminense, Paysandu e Botafogo, por
exemplo, eram formados por ingleses, alemães e brasileiros abastados, quase
todos brancos.
Ceguinho Torcedor: - Os que tinham pele negra só eram
aceitos se fossem de família abastada também.
João Sem Medo: - E eles procuravam se vestir, até
pra jogar, com as melhores roupas da época.
Sobrenatural de
Almeida: - Pois em
Bangu, começou essa rivalidade que levava a torcida a não aceitar derrotas em
casa.
João Sem Medo: - O grande Mario Filho nos contou
estas histórias no clássico “O negro no futebol brasileiro”. Aliás, o Mario
Filho é o tio de vocês. Afinal era irmão de Nelson Rodrigues.
Ceguinho, Sobrenatural e Idiota
concordam.
Veja também:
Memórias da geral do Maracanã
"Contos da Bola", quem lê recomenda
Ceguinho Torcedor: - É verdade. Mario Filho foi o criador
das multidões!
Garçom: - E veja que absurdo, “seu” Ceguinho, quase tiraram o nome do Mario
Filho do Maracanã há pouco tempo. Ainda bem que recuaram.
Ceguinho Torcedor: - Seria uma injustiça colossal!
Sobrenatural de Almeida: - Se confirmassem este absurdo, o estádio que virou arena seria amaldiçoado, desmoronaria
em ruínas de tantas podridões depositadas em suas entranhas ao longo dos anos
por lorpas, pascácios, interesseiros minúsculos, e seria transformado definitivamente
num coliseu, num Parthenon brasileiro.
Fim do capítulo 4
Esta série é uma homenagem especial a João Saldanha e Nelson Rodrigues e também a Mario Filho e muitos dos artistas da música, da literatura, do futebol e de outras áreas da Cultura do nosso tão maltratado país.
Saiba mais clicando aqui.
Veja também:
Uma coisa jogada com música - capítulo 5
Uma coisa jogada com música - capítulo 3
Obs: Postagem republicada em 25 de outubro de 2023
domingo, 20 de fevereiro de 2022
OLHARES ALHURES - FOTOS #77: MATIZES DO CÉU
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sábado, 19 de fevereiro de 2022
OLHARES ALHURES - FOTOS #76: "LUA LUA LUOU"
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sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022
NAU POESIA: HÁ MUITO O QUE FAZER
nesta tarde abafada sem sol
E os reflexos do olhar perdido
Tudo se perde neste dia
tão igual ao outro
O formigueiro humano
escoa sob os meus pés
girando, girando, girando
em torno do ralo gigante
que é esta grande cidade
tão provinciana
É a torrente imaginária
carregando a multidão
sempre pros mesmos lugares
com os seus mesmos gestos,
olhares, a mesma prisão
O espelho de carne e osso
se partiu na noite passada
e reflete uma vida despedaçada
ninguém vê, ninguém vê
há muito o que fazer
O incenso do lixo urbano
não é recolhido, nem reciclado
fica jogado no meio desse dia nublado
ninguém percebe, ninguém percebe
há muito o que fazer
Ainda grita no vácuo do tempo
o urro desperdiçado da noite
ferida no ventre inchado da madrugada
ninguém ouve, ninguém ouve
há muito o que fazer.
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Pesadelos
Nada mais
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022
UMA COISA JOGADA COM MÚSICA - CAPÍTULO #3
Após o êxtase com a recordação da conquista do Campeonato Sul-Americano de 1919 e a apresentação de “Um a Zero” pelos Oito Batutas, quem toma a dianteira no papo entre os velhos amigos é o Idiota da Objetividade, que, amante do futebol de resultados, contesta a paixão pelo chamado futebol-arte.
Idiota da Objetividade: - Vocês precisam ter uma visão
mais pragmática das coisas. A tática, a estratégia... O jogo de futebol é igual
ao xadrez.
João Sem Medo: - Sem essa, Idiota. Foi você que soprou
nos ouvidos dos cartolas da CBF pra botarem o Dunga como técnico da seleção
duas vezes, né?
Idiota da Objetividade: - Não fui eu, não! Quem faz
essas coisas é o Sobrenatural. Mas eu achei boa a opção. Melhor vencer jogando
feio, do que perder jogando bonito.
Os
outros três, os músicos que subiram ao palco, algumas pessoas em mesas próximas
e até o garçom protestam.
João Sem Medo: - Mas não venceu nem jogando feio, Idiota!
Idiota da Objetividade: - Venceu
sim, João! A Copa América de 2007 e a Copa das Confederações de 2009.
João Sem Medo: - E
serviu pra quê este torneio da Fifa? Perdemos pra Holanda em 2010 nas quartas e
voltamos mais cedo pra casa.
Veja também:
Memórias da geral do Maracanã
O torcedor de futebol
Zé Ary se aproxima da mesa.
Garçom: -
Senhores, desculpe interrompê-los, mas recebi um pedido das pessoas das outras
mesas pra ouvir a conversa de vocês. Estão todos muito interessados.
João Sem Medo: - O
papo é a vida do futebol, como eu disse.
Ceguinho Torcedor: - E a
verdadeira apoteose é a vaia. E como só os imbecis têm medo do ridículo, vamos
estender a nossa conversa, então. Como faremos?
Garçom: - Podem
se sentar àquela mesa ao lado do palco que todo mundo vai conseguir ouvi-los
muito bem.
João Sem Medo: - Perfeito.
Vamos, então.
Enquanto os quatro amigos trocam
de mesa, aplaudidos pelos presentes, um
grupo musical que está no palco se apresenta: é o grupo Francisco Lima.
Francisco de Oliveira Lima: - Senhoras e senhores, já que a
conversa aqui é sobre o “foot-ball”, vamos tocar uma polca de minha autoria que
foi a primeira música relacionada a este esporte gravada no Brasil. Foi em
1912...
João Sem Medo (aos
amigos): - Ano em que o criador de vocês três nasceu.
Francisco de Oliveira Lima: - ... Ou 13, já não me recordo bem. Chama-se, naturalmente, “Foot-Ball”.
Aplaudido, Francisco de Oliveira Lima e seu grupo começam a tocar.
Os músicos agradecem os aplausos
e deixam o palco.
João Sem Medo: - Essa música é do tempo em que o futebol e
a música do Brasil ainda eram totalmente influenciados pelos europeus, os
ingleses especialmente.
Sobrenatural de Almeida: - A seleção brasileira nem
existia ainda e já tinha música sobre futebol no país. Assombroso!
Ceguinho Torcedor: - Assombroso mesmo é que naquele tempo, em
dias de regatas do remo, não havia jogos de futebol. Eram chamados à inglesa,
de matches ou meetings no field.
Depois o futebol ficou tão popular que o remo é que passou a esperar a tabela do
campeonato de futebol pra marcar os dias e horários das regatas.
João Sem Medo: - O Flamengo no início resistiu muito a ter
um time de futebol, mesmo recebendo nove dos onze titulares do Fluminense que
foram campeões em 1911 e mais alguns sócios que trocaram de lado. Teve até um
uniforme de futebol diferente do remo, que já era tradicional no clube.
Ceguinho Torcedor: - João, meus amigos, o Fla-Flu
nasceu 40 minutos antes do nada. O termo, aliás é uma criação do grande Mario
Filho, o criador de multidões.
João Sem Medo: - Não é por acaso que o
Fla-Flu seja conhecido como o Clássico das Multidões, então.
Ceguinho Torcedor: - Pois então, o que ia dizendo? Ah sim, no primeiro
Fla-Flu registrado na História, o segundo time do Tricolor, reforçado apenas
por Osvaldo Gomes e Calvert, venceu o antigo primeiro time, que passou a vestir
a camisa rubro-negra.
Idiota da Objetividade: - A
primeira camisa do futebol do Flamengo era quadriculada.
João Sem Medo: - Que o pessoal chamava
de Papagaio de Vintém.
Sobrenatural de Almeida: - Era muito feia, os
jogadores até diziam que dava azar. Na verdade, andei jogando contra aquele
time de desertores tricolores até arrumarem um uniforme mais bonito.
Alguns na plateia riem.
Veja também:
Jogada de Música no Lamascast
Uma estreia muito feliz no Museu da Pelada
Idiota da Objetividade: - O primeiro título rubro-negro,
em 1914, só veio com a camisa cobra-coral, que tinha listras finas brancas
entre as pretas e vermelhas. Os primeiros títulos, pois foi bicampeão carioca,
em 14 e 15.
Sobrenatural de Almeida: - Aliás, o primeiro título de
remo do Flamengo só veio depois do futebol no clube.
Idiota da Objetividade: - Também foi um bicampeonato,
em 16 e 17.
Sobrenatural de Almeida: - Mas não sou muito chegado ao
remo.
João Sem Medo: - Com a explosão da Primeira Grande Guerra,
os inimigos alemães foram perseguidos também aqui no Brasil. Como a camisa do Flamengo
era parecida com a bandeira alemã e lá havia muitos sócios alemães, a camisa e
os sócios alemães foram banidos do clube.
Garçom: - Este
papo sobre as origens do Flamengo me deram uma ótima ideia.
Esta série é uma homenagem especial a João Saldanha e Nelson Rodrigues e também a muitos dos artistas da música, da literatura, do futebol e de outras áreas da Cultura do nosso tão maltratado país.
Saiba mais clicando aqui.
Veja também:
Uma coisa jogada com música - Capítulo 2
Uma coisa jogada com música - Capítulo 4
domingo, 13 de fevereiro de 2022
OLHARES ALHURES - FOTOS #75: PLANTAS EM CASA
Fotos de Eduardo Lamas, feitas no dia 19 de dezembro de 2021, em Itaguaçu, Florianópolis (SC).
sábado, 12 de fevereiro de 2022
OLHARES ALHURES - FOTOS #74: FLORES EM CASA
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022
UMA COISA JOGADA COM MÚSICA - CAPÍTULO #2
A música “Só se não for brasileiro nessa hora” (Galvão e Moraes Moreira) está acabando e João Sem Medo parece imerso naquela melodia e sua letra ("Só se não for brasileiro nessa hora..."), quando avista na porta do Além da Imaginação o seu grande amigo Ceguinho Torcedor, que entra auxiliado pelo Idiota da Objetividade e o Sobrenatural de Almeida.
João Sem Medo (de pé pra recebê-los): - Meus
amigos, sejam muito bem-vindos! Hoje a resenha promete. Esses aqui saíram das
crônicas do meu amigo Nelson Rodrigues especialmente pra esta resenha, Zé Ary.
Este aqui é o Ceguinho Torcedor, ele não vai ver você, nem ninguém aqui
direito, mas enxerga longe; Sobrenatural de Almeida, com todo respeito, este
aqui apronta, e o Idiota da Objetividade, que veio aqui pra tirar um pouco da
nossa fantasia. hahahaha Ele é o nosso copidésque!
Ceguinho Torcedor: - Que prazer, João! Garçom, traga-me um copo de leite, por
favor. (a João) Meu amigo e irmão João Sem Medo, preciso
tratar minha úlcera a pires de leite. Ela lambe como uma gata.
Agora é a vez de os músicos irem entrando
aos poucos no restaurante-bar e arrumando seus instrumentos no palco. O bar
neste momento já tinha muitas de suas mesas ocupadas.
João Sem Medo: - Amigos, o futebol brasileiro é uma coisa jogada com música. E a música
aqui hoje também promete muito. Ceguinho, os músicos estão chegando.
Ceguinho Torcedor: - Que maravilha. O que vão tocar? Uma ópera, o “Rigoletto”?
Garçom: - Não, seu Ceguinho. Eles vão tocar música popular brasileira
com grandes artistas, alguns já presentes aqui.
Sobrenatural de Almeida: - Artistas que são de outro mundo!
Garçom: - Isso, eles vão tocar músicas que falam de futebol. Do
nosso futebol.
Ceguinho Torcedor: - Muito bem. Interessante.
João Sem Medo: - Pelo que o Zé Ary me contou, são músicas que todo torcedor de
futebol deveria conhecer.
Ceguinho Torcedor: - O torcedor é cego de paixão pelo seu clube. Mas o pior
cego é o que só vê a bola.
João Sem Medo: - O torcedor é na verdade um distorcedor de fatos...
Ceguinho Torcedor: - ... Se os fatos o desmentem, pior pros fatos.
João Sem Medo: - ... E é um grande saudosista. Principalmente quando
seu time vai mal. E como nossa seleção vem muito mal das pernas já tem tempo, o
melhor é falar do passado glorioso do nosso futebol, não acham? Recordar é
viver! Isso dá samba, canção, marchinha, chorinho... Hum, chorinho de alegria,
por favor, Zé Ary!
Com o grupo musical já a postos, um deles
se levanta para se dirigir aos presentes.
Donga: - Saudações a todos! Nós, Os Oito Batutas, temos a honra de
tocar aqui pra vocês novamente após tanto tempo. Estamos aqui em sete, então,
pra completar o grupo, vamos chamar ao palco um ilustre integrante do nosso
grupo que está lá no fundo. Vem pro palco, Pizindim!
Ceguinho Torcedor: - Os Oito Batutas aqui! Pixinguinha! Isso é fantástico.
Sobrenatural de Almeida: - Assombroso!
João Sem Medo: - Espetacular!
Veja também:
Todos aplaudem de pé.
Ceguinho Torcedor: - Ah, que bons tempos aqueles! Amigos, eis uma verdade eterna: o
passado tem sempre razão. Por exemplo: o futebol antigo. Era, a meu ver, um
fenômeno vital muito mais rico, complexo, intrincado. Hoje, os jogadores, os
juízes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não
encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa, taxativa. Não há um
craque, um árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um símbolo humano
definitivo.
Sobrenatural de Almeida: - Tá muito saudosista, Ceguinho.
Ceguinho Torcedor: - Nada mais antigo que o passado recente, meu amigo. Esta
música que tocaram há pouco me lembra o Garrincha driblando, mas ela foi feita
muito antes de o Mané nascer, vocês todos sabem muito bem disso.
Pixinguinha (antes de deixar o palco): - Essa música se chama “Um a Zero” e é uma homenagem à primeira
grande conquista do futebol brasileiro, o Campeonato Sul-Americano de 1919.
Muito obrigado.
Pixinguinha é mais uma vez aplaudidíssimo e se
dirige novamente ao fundo do restaurante, agora acompanhado dos outros sete
batutas.
João Sem Medo: - Ganhamos de 1 a 0 do Uruguai, no estádio das Laranjeiras, que
tinha sido construído praquela competição, a terceira entre seleções da América
do Sul.
Ceguinho Torcedor: - Um jogo épico, senhores! Um jogo épico decidido pelos pés de Arthur
Friedenreich.
Sobrenatural de Almeida: - Com a minha intervenção, é claro.
João Sem Medo: - Tá bom, Almeida.
Ceguinho Torcedor: - Foi uma partida dramática, assistida por 25 mil torcedores no
estádio do Fluminense e mais uns 10 mil nos barrancos próximos.
Idiota da Objetividade: - Brasil e Uruguai haviam terminado o torneio empatados em pontos
e foi necessária a disputa de uma final.
João Sem Medo: - Os uruguaios foram pro jogo ainda abalados pela morte de seu
goleiro Roberto Chery, que se chocou violentamente com um atacante chileno
durante a competição.
Ceguinho Torcedor: - É isso mesmo. Eu estava lá, na arquibancada das Laranjeiras. Eu, meu
amigo Gravatinha... Ainda éramos crianças, mas me recordo bem. Ninguém se
continha de tanta expectativa e apreensão. Jogamos demais, demais.
Idiota da Objetividade: - Demais mesmo, o jogo terminou sem gols no tempo normal. Passou a prorrogação
de 30 minutos e nada, apesar das muitas chances pros dois lados.
Ceguinho Torcedor: - Eu estava lá, eu estava lá. Gravatinha não pôde vir hoje pra atestar o que estou falando, mas podem confiar. Foi um grande jogo, meu coração não mente.
Veja também:
Zé Ary se dirige ao velho rádio
em cima de uma estante, sintoniza na estação certa e todos podem ouvir a
narração do gol de Friedenreich vinda do além de qualquer imaginação, pois o
rádio só começou a transmitir jogos de futebol na década de 30, e - pasmem! -
com imagens da partida projetadas num telão.
Transcrição da narração
fictícia do gol: “Brasil no ataque. Neco invade o território
uruguaio pelo lado direito, Foglino está em seu encalço. Neco leva na linha de
fundo, cruza, Heitor bate firme, Saporiti defende, larga, o balão de couro
sobra pra Friedenreich, é gol. Gooooooooool do Brasil, Friedenreich,
Friedenreich, aos três minutos da segunda prorrogação! Nooooooooo
placaaaaaaaaaaarrrrrr: Brasil uuuuuuuuuuum, Uruguai zerooooo”.
Todos no restaurante fazem uma festança com o gol, como se tivesse
ocorrido naquele instante.
Sobrenatural de Almeida: - Que coisa linda! Que coisa linda eu fiz.
Idiota da Objetividade: - Ainda foram jogados mais 27 minutos, mas o placar ficou mesmo no 1 a 0 pro Brasil, que se tornaria assim, pela primeira vez, campeão sul-americano de futebol.
Sobrenatural de Almeida: - Eu desviei levemente a bola chutada pelo Heitor, por isso o Saporiti
não conseguiu segurar. Já não aguentava mais aquele jogo sem gols.
Idiota da Objetividade: - Esta conquista ajudou muito a popularizar o futebol no Brasil.
Esta série é uma homenagem especial a João Saldanha e Nelson Rodrigues e também a muitos dos artistas da música, da literatura, do futebol e de outras áreas da tão vilipendiada Cultura do nosso tão maltratado país.
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